Folha de S. Paulo


Não desejo prisão comum nem a quem matou meu irmão, diz voluntária

Socorro Machado, 52, não aceitava a morte do irmão assassinado. Após uma depressão de três anos, ela começa a superar o trauma quando se matricula em um curso de formação de voluntários para a Apac (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), filiada à Fbac, finalista do Prêmio Empreendedor Social.

"Fiquei assustada: 'Meu Deus, eu não vou fazer esse curso para defender bandido'", lembra a hoje presidente da Apac em Timon (MA). Com metodologia que humaniza o preso, o trabalho na associação a fez ver que os presos precisam de oportunidade para voltar à sociedade.

"Aqui, nós estamos construindo uma nova história", afirma. "Vejo que nós estamos no caminho certo. Eles estão voltando para casa, e a sociedade tem que agradecer: saiu um criminoso e voltou um cidadão de bem."

Leia abaixo o depoimento de Socorro à Folha.

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Meu envolvimento com a Apac se deu em um curso de formação de voluntários. Nos primeiros dias, fiquei assustada: 'Meu Deus, eu não vou fazer esse curso para defender bandido'. Mas fiquei até o fim e compreendi que ali era o meu lugar.

No início, foi um choque porque eu perdi um irmão assassinado. Imagina a revolta da minha família! Eu também não aceitava a morte dele. Tive crise depressiva por três anos.

ESCOLHA DO LEITOR

Ao término do curso, quando eu tive que ir para o presídio foi um desespero, pois era como se eu estivesse procurando quem matou o meu irmão. Só que ali eu vi pessoas, um mundo que não se pode desejar nem para o seu pior inimigo.

Então, aos poucos, fui compreendendo que eu havia sido escolhida para estar ali naquele momento. Quando percebi o sofrimento daqueles meninos, parei de procurar o assassino do meu irmão.

A ideia que a sociedade tem é que os presos estão num hotel, no bem bom, mas eu conheci a realidade e não desejo o sistema prisional nem para o assassino do meu irmão. É terrível, ali realmente é o inferno.

Eu passei a vida toda achando, junto com a sociedade, que 'a polícia prende, e a Justiça solta', 'a culpa é dos pais', 'a culpa é da família'. Hoje, não procuro mais culpados. Quero contribuir para mudar essa história.

Sou mãe de dois filhos. Vejo os recuperandos da Apac como filhos que precisam de uma nova oportunidade. Aqui, nós estamos construindo uma nova história. Ensinando a falar, a respeitar o próximo, os valores que eles perderam ou nunca tiveram. Aqui, eu estou sempre ao lado deles, educando com amor, dizer o não com amor, no momento necessário.

Não senti dificuldade de ser uma mulher à frente de um presídio masculino. Eu encontro até facilidades, eles são obedientes e me respeitam. Entro de cabeça erguida, com transparência, mostrando para eles que estou ali, sou amiga deles e tudo que a Apac está fazendo é para o bem deles.

HUMANIDADE

É muito lento o processo de transformação, mas acreditamos no diálogo. Quando eles saem do presídio e vêm para a Apac, é um baque. É muita emoção a chegada deles, o resgate. Eu não consigo recebê-los no momento, fico sempre da minha sala acompanhando. Eles vêm tão humilhados, cabeça baixa. Estamos aqui para mudar o caminho dos recuperandos.

O que aprendi sobre presos é que, antes de eles serem presos, são seres humanos. Tem crimes que eles não conseguem nem dizer porque fizeram aquilo. Eu espero me chamarem para entrar no mundo deles. Não faço perguntas.

É muito difícil ter que transferir um recuperando de volta para o sistema comum. Sofro. Sei que tentaram mudar de vida, mas não conseguiram. Às vezes, me considero fracassada, fico me perguntando onde foi que eu errei.

Em compensação, quando sai alguém da Apac e retorna para a sociedade, vejo que nós estamos no caminho certo. Eles estão voltando para casa, e a sociedade tem que agradecer: saiu um criminoso e voltou um cidadão de bem. Quando saem, acompanhamos o trabalho externo, a família.

MOTEL

No início, trabalhávamos dentro do sistema comum, mas era difícil implementar uma Apac lá. Por isso, alugamos uma casa pequena para 39 recuperandos. Teve muita reação da comunidade local. Sabíamos que íamos encontrar dificuldades, mas conseguimos inserir a associação naquele bairro.

Para a vizinhança, no começo, eram bandidos reunidos numa casa só, em uma rua de famílias de bem. Tivemos de explicar o que era a Apac, o método e fomos quebrando os preconceitos.

Nosso convênio precisava aumentar, e a casa não dava mais. O secretário de Administração Penitenciária me disse: 'Procure um local que nós fechamos o acordo'. Foi quando soube de um motel abandonado e fui atrás.

Encontramos os quartos de camas redondas tomados pelo matagal. Convencemos secretário, juízes, promotores de que era um bom lugar. E fizemos desse motel uma Apac, com o apoio da Fbac. Foi um momento ímpar para dar tudo certo.

O proprietário do motel estava aberto para fazer uma reforma na planta. Era preciso tirar as garagens, ampliar e fazer novas salas, cozinhas, substituir as camas redondas por quadradas. As suítes do motel viraram as celas e dormitórios.

A Apac hoje funciona com os três regimes, o fechado, o semiaberto e o trabalho externo.

Sou feliz porque todo dia vejo que estou no caminho certo, vejo esses meninos retornando para sociedade.

SUPERAÇÃO

Minha família também conseguiu superar [a morte do irmão], porque foi muito contagiante, eu levei isso aqui para eles. Todos os meus sentimentos de perdoar, de que as pessoas precisam de uma oportunidade, eu passei para eles.

Pedi a Deus para apagar o rosto da pessoa que matou o meu irmão da minha memória. E consegui. Eu não sei se um dia eu posso encontrá-lo aqui ou em qualquer outro local, mas eu sei que eu sou outra Socorro, sei que sou outra pessoa e vou olhar ele com outros olhos.

Eu [falaria para ele que eu] perdoava. Não porque deixei de amar o meu irmão, mas porque Deus me colocou aqui.

É por isso que amo esse projeto. Poderia vir aqui duas vezes na semana, mas venho todos os dias. Eu preciso saber como está cada um deles porque a Apac me transformou, me deu uma oportunidade de renascer, de não ser mais aquela pessoa cheia de mágoa. A Apac me salvou. Foi Deus que me colocou nessa missão.

Quando vejo a sociedade gritando que quer pena de morte, é triste. Continuo dizendo que eles não conhecem o outro lado da história. Aos poucos, procuro me aproximar e falar: 'A pessoa vai pagar pelo crime, mas não da forma como você deseja'.

Eu também já estive dos lados daqueles que desejam vingança.

Meu sentimento em relação a esse projeto é de oportunidade. Eu estou fazendo alguma coisa, contribuindo e não só criticando. Eu sou católica e eu senti, com a minha fé, que havia necessidade de fazer obras.


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