Folha de S. Paulo


'Eles me restituíram uma vida', diz transgênero que ganhou dentes novos

Aos 15 anos, Thais Azevedo, 67, desembarcou em Copacabana, no Rio, em plena Ditadura Militar.

Descobrir-se Thais durante os anos de chumbo não foi fácil. Fugiu de casa. Nas ruas, foi agredida, presa e estuprada. Perdeu os dentes para a violência.

Tornou-se militante da causa LGBT e, especialmente, defensora das pessoas que, assim como ela, são transgêneros.

No entanto, algo ainda lhe incomodava: a perda do sorriso, seu cartão de visitas.

Este ano, Thais conheceu o projeto Apolônias do Bem, que lhe ofereceu tratamento odontológico gratuito.

Realizado pela ONG Turma do Bem, fundada pelo dentista Fábio Bibancos, vencedor do Prêmio Empreendedor Social, em 2006, o programa que tem apoio da ONU Mulheres já atendeu mais 650 mulheres nos últimos quatros anos e este ano passou a cuidar também de mulheres transgênero.

Leia a seguir o depoimento de Thais à Folha.

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Eu nasci em 1949, atravessei períodos tenebrosos da ditadura e de afirmação da democracia.

As mulheres transexuais da minha época não tinham visibilidade social nem reconhecimento. Éramos submetidas a todos os tipos de violência. Até esqueço das violências psicológicas porque as físicas eram tão assustadoras. Às vezes, fico perguntando: 'Nossa, sobrevivi?'

Nasci em uma cidade pequena que se chama Várzea da Palma, em Minas Gerais, às margens do rio das Velhas, bem próximo ao rio São Francisco.

Quando eu fiz 15 anos, em 1964, época em que uma garota estaria fazendo o seu 'début', entrei na ditadura ou a ditadura entrou em mim.

As coisas não eram fáceis para homossexuais porque não tínhamos acesso a nenhum tipo de informação, só a nomes pejorativos.

Fui criada muito à vontade com a minha família. Meus pais nunca questionaram minha natureza extremamente feminina.

Quando meu pais morreram, éramos em nove filhos, e cada um foi para uma casa. Eu fiz o primário e fui morar com a minha tia no Rio de Janeiro para estudar, onde já estavam outros dois irmãos.

Minha tia era extremamente machista. Foi a primeira vez em que ouvi o termo 'veado'. Como uma mulher de cidade grande, ela imediatamente percebeu, e comecei a escutar coisas do tipo: 'Se tiver que envergonhar a cidade, o mundo é grande'.

Eu não sou homossexual, sou transgênero. Acham que veado é tudo a mesma coisa. Não é. Há uma diversidade sexual. Um homem e mulher homossexuais são diferentes apenas na orientação sexual. Já a pessoa transgênero não. Normalmente não combina com seu biológico.

Fugi de casa aos 15 anos. Fui para o mundo. Mas o mundo nos anos 1960 e 1970 não era acolhedor, estávamos em uma ditadura, onde tudo podia sobre o mais fraco. Foi tenebroso.

Na rua, havia muita violência. Aqueles que deveriam ser os meus protetores eram os piores, os que mais me violentavam.

Meu sorriso chamava muito a atenção. Foi uma das coisas que me tiraram rapidinho.

Eu não perdi meus dentes. Arrancaram na rua. Tinham uns policiais que nos pegavam e estupravam. Totalmente sádicos.

GÊNERO

O meu gênero é uma construção social, não é biológico. Eu não preciso de determinadas transformações [cirúrgicas] para me adequar à sociedade. Eu tenho uma visão muito política, não gosto de me adequar. Acho que existe uma diversidade dos seres, das tendências, de necessidades e desejos que as pessoas precisam respeitar.

Os nossos corpos, enquanto machos e fêmeas, são protótipos para reproduzir e perpetuar a espécie. Mas a questão de gênero é uma construção pessoal.

Para mim, nem se colocaria o gênero na documentação.

A história da humanidade é conservadora, tenebrosa, caminha a passos lentos. Ainda precisamos de cidadania completa. Preciso votar, trabalhar, apresentar documentação e pagar impostos, que são retirados na fonte. E não sou respeitada nas minhas necessidades particulares.

Nós [transexuais] vivemos em uma exclusão que é extrema.

Falamos muito de democracia, de liberdade. Mas roubamos a liberdade do outro o tempo todo.

Estamos no terceiro milênio e vemos mulheres estupradas e violentadas. Acho, inclusive, que quando se depõe uma presidente é também uma grande violência.

Pensamos que a violência do homem contra a mulher está na favela. Não é verdade. O homem ainda é prepotente na sua supremacia.

MUNDO DE ALICE

Já que todo mundo me tratava como mulher, deixei meu cabelo crescer. Conheci um homem que era mais velho, um advogado muito intelectualizado. Ele montou um apartamento para mim, morávamos juntos.

Com ele, comecei a tomar hormônios aos 16, 17 anos. Fiquei muito deslumbrada comigo mesma. Adquiri formas e aparências femininas e penetrava na sociedade com mais facilidade. Não tinha mais medo de que as pessoas achassem que eu não fosse mulher.

Mas ele tirava a minha liberdade. Eu queria conhecer a vida, desfrutar da minha juventude como mulher.

Conheci um estilista. Ele me propôs vir para São Paulo para ser manequim de prova. Eu tinha as medidas necessárias. Foi o momento em que me libertei.

Eu vivia em um 'mundo de Alice'. Só que era tudo maravilhoso na aparência, mas eles me escravizaram. Era modelo, manequim, passadeira, faxineira, fazia vitrine e ganhava um salário mínimo.

De repente, eu tinha um namorado que me dava dinheiro, mas nunca tive talento para prostituição.

CAÇADAS COMO BICHOS

Na ditadura, as transexuais saíam à noite e eram caçadas como bichos. Isso aconteceu comigo várias vezes.

Quando a polícia baixava, vinha com cachorros. Eu achava um abuso. Uma vez eu os enfrentei e um cachorro me mordeu. Fui presa mais de uma vez, mas não ficava porque tinha carteira assinada. Eu perdi muitas amigas, que simplesmente sumiam, eram assassinadas.

GRACE KELLY DE PARIS

Teve uma amiga que foi para a França nos anos 1970. Recebi uma carta dela falando que estava muito bem e que eu não devia ficar aqui sendo escrava. Ela mandou foto, tinha feito cirurgia no nariz, botado peito de silicone, parecia uma atriz de cinema.

Imediatamente São Paulo ficou pequena para mim. Cheguei a Paris sem um tostão, em 1977. O motorista de táxi se apaixonou por mim, foi o primeiro cliente que fiz em Paris.

Por ser diferente, eu era considerada a Grace Kelly das travestis brasileiras.

SURGIMENTO DO HIV

Começou o boom da Roberta Close no Brasil. Gostava do glamour, mas voltei com dinheiro e joias em meados de 1985. Eu fiquei uns 20 anos indo e vindo da França. Também fui para a Itália.

Começou a questão do HIV. Tinha uma cafetina em São Paulo que estava perdendo todas suas meninas. O prostíbulo passou a ser uma clínica. Tinha 45 leitos, de onde saiam mortos todos os dias. Fui cuidar das meninas nessa casa.

Do Brasil, fui ser voluntária na Alemanha, onde ganhei um curso de auxiliar de enfermagem. Descobri minha vocação para o social e como pessoa.

Voltei para o Brasil e fui para a mesma casa que cuidava das pessoas com HIV, que já não morriam porque existia remédio.

Surgiu o Centro de Referência da Defesa e Diversidade [vinculado à Prefeitura de São Paulo], que atende a população LGBT em extrema vulnerabilidade social. Eles me contrataram para ser recepcionista, em 2008. Atualmente sou orientadora e educadora no centro.

NÃO É GLAMOUR

Minha vida é muito glamorosa à primeira vista, mas quando cheguei à Turma do Bem não tinha mais nenhum dente, só uma prótese velha e quebrada. Precisava fazer outra, mas também pagar meu aluguel, comer, me vestir.

Sempre me apresentei como uma pessoa muito forte, uma carapaça. A ausência de dente para uma mulher que fala e discute como eu, de repente, com próteses velhas dançando dentro da boca, é horrível.

Ter dentes não é glamour. É não ter medo de falar com as pessoas. É não ter que à noite tirar os dentes e colocar dentro de uma vasilha com água.

Foi muito importante para mim, a princípio, pela questão da aparência. Vi o quanto perdi de qualidade de vida por causa de dentes destruídos. E também na questão sexual, amorosa e social.

Fui tratada pelos doutores Carol, Marília, Fábio, Meire, Scott, durante uns três meses.

Embora eu lutasse por um mundo melhor para as transexuais, não confiava na espécie humana.

Não são os dentes em si, não é o feito. Você vai criando mecanismo para se proteger. Eu mascava chicletes para disfarçar a falta.

Quando me devolveram coisas como os dentes, que são de suma importância socialmente e para a própria saúde, me restituíram do que me foi roubado lá atrás: uma vida. A Turma do Bem me restituiu.

Agora, posso agradecer, continuar sendo íntegra, passar para frente esse bastão. Pessoas boas existem.


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