Folha de S. Paulo


'Eu era Cinderela', diz artesã ao vender almofada por R$ 110 mil em Cannes

Filha de lavradores, Ana Lúcia Franco, 42, é a caçula de sete irmãos. Nascida no subúrbio do Rio, seu sonho parecia descolado da realidade: estudar, trabalhar e ser uma mulher independente.

Casou-se ainda menor de idade, virou mãe de três filhos e passou de dependente da mãe a do marido.

O sopro de liberdade da moradora da comunidade do Dique, no Jardim América, começou a se materializar quando ela foi selecionada para um curso de empreendedorismo em uma ONG.

Foi fazendo artesanato que obteve sua primeira renda, aos 28 anos: R$ 50, de uma bolsa de estudo.

Em 2010, ao montar seu próprio grupo produtivo, o Fuxicarte, foi convidada para integrar a recém-criada Rede Asta, projeto fundado por Alice Freitas, finalista do Prêmio Empreendedor Social, em 2013.

A iniciativa trabalha com o fortalecimento de empreendimentos produtivos da base da pirâmide pelo acesso a mercados, conhecimentos e criação de redes, com o intuito de contribuir para a diminuição da desigualdade social.

Desde sua fundação, empoderou, por meio do artesanato, 1.200 mulheres brasileiras, sendo 90% delas das classes D e E, espalhadas por dez Estados.

Para Lúcia, o reconhecimento não tardou. Em 2012, a carioca foi eleita a melhor microempreendedora do ano no Prêmio Internacional de Microfinanças, conferido pelo grupo francês Planet Finance.

A chancela europeia levou Lúcia para duas temporadas em Paris, com uma passagem por Cannes e direito a desfilar pelo tapete vermelho do tradicional Festival de Cinema.

"Tudo isso a partir de um curso em uma ONG. É mostra de onde o trabalho pode nos levar", diz ela, uma autêntica "Cinderela" do fuxico, que viu uma almofada sua ser vendida em um evento beneficente por R$ 110 mil.

Leia a seguir o depoimento de Lúcia à Folha.

*

Minha família veio da roça, trabalhava na lavoura e morava em São Fidélis, no Rio de Janeiro. Éramos de classe bem baixa e tínhamos uma vida difícil, porque somos em sete irmãos.

A mais velha veio trabalhar no Rio e engravidou. Como antigamente uma mulher [solteira] engravidar era absurdo, minha mãe e meus irmãos se mudaram, só com a roupa do corpo, para morar com ela na capital, onde nasci.

No Rio, minha mãe virou cozinheira e me transformou em uma dona de casa aos sete anos.

Por ser a caçula, minha mãe me prendeu e me deu uma criação muito dura. Ela dizia: 'Você não vai trabalhar fora. Não quero outra filha grávida'.

Eu tinha muita vontade de fazer um curso de datilografia, mas nem isso ela deixou.

Aos 17 anos, tive uma ideia maluca: decidi me casar para ter liberdade. Eu e meu marido, que era cobrador de ônibus, fomos morar em uma casa ao lado da minha mãe.

Não alcancei a liberdade que imaginei com o casamento. Um ano depois engravidei. Passados outros quatro, tive gêmeos.

Comecei a ganhar minha liberdade há 14 anos quando entrei em um curso da ONG Cieds [Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável], que selecionou 32 jovens de diferentes comunidades.

Sempre tive o desejo de ter minha própria renda, mas de modo que continuasse tomando conta dos meus filhos dentro de casa.

Montamos uma microempresa para trabalhar com fuxico, artesanato que estava muito em alta na época. Foi a primeira vez que tive contato com esse material. Lembro que, aos 28 anos, recebi meu primeiro dinheiro: uma bolsa oferecida pela ONG no valor de R$ 50.

Saí do curso e a ONG me jogou dentro do Fashion Business, uma feira de negócios voltada à moda.

No evento, conhecemos uns empresários e passamos a trabalhar para eles, aplicando fuxico em roupas.

Comecei a ganhar dinheiro e ajudar dentro de casa. Nesse tempo, o real era bom e R$ 900 por mês era 'dinheiro que dói'. Eu reformei minha casa, bati laje, reboquei as paredes, coloquei piso e comecei a montar minha cozinha.

Meu marido ficou feliz da vida. Antes, eu tinha que pedir dinheiro, depois, ele passou a me pedir emprestado.

Na feira, dei uma entrevista ao 'Jornal Nacional' e a Alice e a Raquel viram e foram atrás de mim para contar sobre o projeto de criar a Rede Asta.

No início, foi bem difícil porque trabalhávamos em consignação. Depois, mudamos nosso produto-chave de roupas para acessórios de casa. Tive que reinventar totalmente meu trabalho. Criamos kits de caminho de mesa e jogo americano. Fizemos 70 peças, mas não vendeu nada.

Com o tempo, a Asta conseguiu que empresários investissem. Passaram a pagar nosso trabalho antes de vender. Tive minha renda de volta. Eu já cheguei a ganhar R$ 2.000 por mês.

Uma designer da Rede Asta, que assessora a gente, sugeriu que montássemos uma almofada de fuxico. A princípio, resisti, mas para a minha surpresa, o produto, que custa R$ 69,90, foi campeão de vendas da Asta por cinco anos.

Ano passado, a almofada de fuxicão fez parte do cenário da novela 'I Love Paraisópolis', da Globo. Fiquei muito feliz. Depois da novela, as vendas subiram em torno de 40%.

Vejo um projeto social como algo que dá a possibilidade para que a pessoa abra sua visão sobre o que é possível conseguir. Hoje, sei que posso mais.

'QUE LOUCURA!'

A Rede Asta fez uma parceira com a francesa Planet Finance, que deu assessoria para cinco grupos produtivos no Brasil, ensinando como fazer a peça, colocar preço, gerar os pedidos e o caixa.

O melhor grupo produtivo ganharia uma viagem a Paris. Tínhamos que contar nossas histórias de vida. Eram mais de 60 mulheres. Pensei que não ia ganhar. Nem computador em casa eu tinha para me inscrever.

Estou na minha comunidade, quando uns gringos vieram até a minha casa me dar os parabéns. Disseram que eu tinha sido pré-selecionada para ir a Paris. Fiquei maluca, gritava, chorava.

No fim, escolheram a minha história. Fui parar no Museu do Louvre ao lado de mais de 300 franceses.

Durante a premiação, apareceu no telão onde eu morava, meus filhos e a história da minha vida. Eu quebrei o protocolo na hora de receber o prêmio das mãos de um empresário europeu. Dei um beijo e um abraço nele, porque é assim no Brasil.

Não sabia que tinha regra social, formalidade. Como eu quebrei esse negócio, o cara gostou de mim. Passado um ano, o tal empresário me ofereceu um jantar e me levou ao Festival de Cannes.

Olha a minha ignorância, nem sabia o que era. 'Lucia, você sabe o que é o Oscar?', disse Alice e eu respondi: 'Sim, sei. Assisto todo ano'. Ela explicou: 'Cannes é o segundo Oscar e é para lá que você vai!'.

Aí fiquei louca, infartei três vezes. Nem a presidenta Dilma entra naquele lugar sem convite. Como é que eu fui parar lá?!

Na França, peguei um trem maravilhoso. Arrumaram meu cabelo e unhas. Fizeram um vestido chiquérrimo com cauda. Virei outra mulher. A Lúcia da comunidade saiu por um tempo e entrou uma mulher cheia do dinheiro.

Viajei com a minha intérprete. Fui à Torre Eiffel, andamos por Paris. Fomos para Cannes de trem, mas esquece os vagões do Brasil, lá é chiquérrimo. Bem que aqui podia ter um daquele.

Fiquei em um hotel maravilhoso com tudo de primeira. Fui de limusine com um cara esticando a mão para eu sair do carro. Estava em um verdadeiro filme. Aquele tapete vermelho, cheio de fotógrafos, luzes...

Quando eu vi o Leonardo DiCaprio, perguntei para a intérprete se eu podia tirar foto com ele. Ela não deixou, disse para eu andar pelo tapete vermelho porque ali eu era igual a ele.

O quê? Eu moro na comunidade do Dique! Perguntei para ela se meia-noite teria que sair correndo, porque o encanto acabaria. Ela disse que eu era a própria Cinderela.

Após a premiação, aconteceu um leilão beneficente e minha almofada de fuxicão foi vendida por 30 mil euros [R$ 110 mil]. Eu nem sabia o quanto era isso.

Voltei para o Brasil e para a minha realidade. Cadê minha cama maravilhosa e meu travesseiro de penas? Mas fiquei muito feliz em saber aonde o trabalho pode nos levar, a partir de um curso de uma ONG.

Logo depois que voltei da França, teve uma enchente muito grande. Eu morava atrás de um rio e ficamos até sem água para beber. Perdi minhas coisas.

Hoje, estamos bem. Meu marido se aposentou e conseguimos dar entrada em um apartamento gostoso em Campo Grande [zona oeste do Rio]. O trabalho com a Asta vai ajudar a pagar.

Tenho meu grupo produtivo que se chama Fuxicarte, somos em cinco mulheres, cada uma trabalha na sua casa. Eu as lidero, a Asta manda o pedido para mim, que distribuo o material entre todas.

Agora, dou palestras pelo Brasil. Nelas, questiono as mulheres aonde elas querem chegar com seus trabalhos e se vão parar na primeira dificuldade.

Eu tive vários 'nãos' antes de chegar ao Festival de Cannes, mas minha meta era não virar dona de casa.

Quero crescer, ter mais mulheres no meu grupo produtivo, ir para outros lugares falar do meu trabalho e poder ajudar outras Lúcias.

Temos que decidir o que queremos. Lutando e com humildade é possível chegar lá.

Aquela Lúcia não existe mais. Agora, tenho uma vida totalmente nova.


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