Folha de S. Paulo


Depois de abuso sexual, boliviana é escravizada em SP durante sete anos

Léo Franco/Turma do Bem
A boliviana Ruth Orozco, que viveu por sete anos em trabalho escravo em SP
A boliviana Ruth Orozco, que viveu durante sete anos em trabalho escravo em uma oficina de costura

Ruth Cristina Orozco, 36, resolveu deixar para trás as lembranças de abusos sexuais que marcaram sua infância em La Paz, a capital boliviana onde nasceu, ao desembarcar no Brasil, em 2000, ao lado do marido e do filho de dois anos.

Ela veio se juntar aos 89 mil bolivianos que vivem no Brasil legalmente, de acordo com a Polícia Federal.

Ainda na Bolívia, o casal recebeu o convite de outros bolivianos para trabalhar em São Paulo em uma oficina de costura.

A proposta pareceu tentadora, mas em terras brasileiras a família foi mantida em cativeiro e escravizada por sete anos.

Nesse período, Ruth careceu de cuidados odontológicos, que lhe foram negados.

Sem condições de pagar por um tratamento especializado, ela perdeu todos os dentes e sofreu com dores durante 12 anos.

Em 2015, quando conheceu o projeto Apolônias do Bem, que oferece tratamento odontológico gratuito realizado pela ONG Turma do Bem.

O programa é voltado a mulheres que vivenciaram situações de violência doméstica. No caso de Ruth, ela foi violentada por um irmão aos 5 anos.

A organização não-governamental foi fundada pelo dentista Fábio Bibancos, vencedor do Prêmio Empreendedor Social, em 2006.

"Encontrei dentistas que foram uns anjos", diz a boliviana que voltou a sorrir e a fazer planos.

Leia a seguir o depoimento de Ruth à Folha.

*

Eu nasci e vivi em Laz Paz, na Bolívia, até os meus 21 anos. Estava recém-casada quando surgiu uma oportunidade de emprego para o meu marido no Brasil.

Eu não queria vir. Tinha um filho de dois anos, estudava e trabalhava. Porém, precisávamos de dinheiro. Como queria continuar meus estudos, fazer medicina, aceitei.

Àquela altura, eu tinha reconstruído minha vida na Bolívia, estava no último ano do colegial e era secretária.

As lembranças da minha infância não eram agradáveis. Sofri muito porque fui violentada dentro de casa e guardei isso por muito tempo.

Quando eu tinha cinco anos, eu fui violentada pelo meu irmão. Ele tinha mais de 15.

Quando contei para nossa mãe, ela brigou com ele e eu apanhei. Ela me levou ao médico, que constatou: eu tinha sido violentada.

Naquele ano, parei de ir à aula. No seguinte, mudei de escola, mas não me recuperei tão rápido. Ficava quietinha nos cantos, não tinha amigos, sofria bullying, apanhava.

Os colegas da escola diziam que eu era estranha. No ano seguinte, me transformei, fiquei agressiva. Foi uma maneira de me refugiar daquilo que aconteceu.

São coisas que até hoje doem em mim. Um mal que fica marcado para sempre.

O difícil foi ter que conviver com o meu irmão dentro de casa. Superei esse trauma graças aos livros e à leitura.

Aos 15 anos, conheci o meu futuro marido. Em seguida, ele veio trabalhar no Brasil.

Passados três anos, retornou à Bolívia. Tudo aconteceu muito rápido. Formamos uma família.

TRABALHO ESCRAVO

Casados, desembarcamos no Brasil em 2000 para trabalhar, trazendo nosso filho de dois anos.

O convite de emprego veio de uns bolivianos conhecidos do meu marido. Eu vim para trabalhar na cozinha e ele, para costurar.

Chegando aqui tive uma surpresa: não poderia sair para estudar. Decidi ir embora. Tentei, mas a única coisa que recebi [dos chefes] foi xingamento.

Como punição, me deixaram parada em um canto como se eu fosse uma criança de castigo, falaram que não podia ir embora e que tinha que cumprir o combinado.

Colocaram os pais do meu marido como moeda de troca. Disseram que se eu fosse embora, eles iam ficar mal.

Depois de dois meses, fiquei grávida. Não gostava de cozinhar e novamente resolvi ir embora. Eu já não tinha tempo de cuidar do meu filho e ainda estando grávida do segundo.

Falei que não precisavam me pagar pelo tempo de trabalhar, mas fui obrigada a ficar.

Não podia ligar para a minha família nem podíamos receber ligações. Nossa família não sabia como estávamos aqui.

Era permitido escrever uma carta por ano. Não relatava nada. Tinha medo que lessem as cartas.

Os chefes diziam que se alguém os denunciassem não ia acontecer nada. Tinham umas oito pessoas trabalhando naquela situação, além da gente.

Na primeira vez que liguei para a minha família, ficaram por perto para ouvir o que iríamos falar.

Tínhamos um quarto, não muito grande, que era compartilhado com outras pessoas que trabalhavam lá, todas bolivianas.

Eu dormia em uma cama de casal com o meu marido e meus dois filhos.

Não tínhamos TV, só um rádio. Éramos proibidos de escutar rádio boliviana, mas ouvia as brasileiras. Com as músicas e folhetos de lojas aprendi a me comunicar em português.

Não podia nem sair para comprar fraldas. Não tinha dinheiro para comprar leite, iogurte, nada. Meu menino só pode ir à escola com quase oito anos. Ensinei meu filho a escrever seu nome e a fazer contas.

Foi nessa época que comecei a ter problemas nos dentes. Na Bolívia, eu tinha possibilidades de ir ao dentista. Aqui, dizer que estava com dor de dente era visto como desculpa para não trabalhar.

Eu precisava tomar remédios para passar a dor. Não mastigava a comida, só engolia, porque doía muito.

Com o tempo, a situação foi piorando e caíram os dentes da frente, depois os molares, todos com cárie. Meu rosto inchava.

Fiquei por cinco anos trabalhando na cozinha. Depois, escondido, aprendi a costurar e passei a trabalhar com roupas.

Eu acordava às 6h e ia dormir às 00h, às vezes trabalhava até às 2h, ou virava à noite, no dia seguinte tinha que continuar trabalhando. Em algumas épocas, trabalhávamos até domingo.

XENOFOBIA

Dei à luz em um elevador do hospital e as enfermeiras falaram: 'Que mulher porca!'.

Quando levaram minha filha para limpar, perguntei para a médica o que era porca. Ela perguntou quem tinha dito isso. Respondi que tinha sido as enfermeiras e ela disse que não era nada, se omitindo.

Quando minha filha tinha um ano e meio, foi agredida na oficina. Ao sair para levar meu filho na creche, encontrei uma policial. Achei que, por ser mulher, ela iria me ajudar, mas não.

Ela perguntou se eu tinha documentos. Quando disse que não, ela falou: "Então, o delegado não vai só te enxotar [da delegacia], mas também te deportar'.

Era a confirmação de toda aquelas mentiras que falavam: que a polícia ia nos pegar e largar na fronteira.

Tive que voltar para a mesma casa onde minha filha foi agredida e fechar minha boca.

Meu marido ficava calado porque tínhamos nossos filhos. Iríamos para onde? Não conhecíamos ninguém, não falávamos o idioma.

LIBERDADE

Quando cumprimos os três anos de contrato, não pudemos ir embora, porque os donos não tinham o dinheiro para nos pagar.

Assim, ficamos por sete anos. O processo para sair foi difícil. Só conseguimos parar de trabalhar naquela oficina em 2007.

Foi quando fomos fazer nossos documentos e passamos a sair para passear em liberdade. Só conhecemos de fato São Paulo em 2008.

Meu marido conseguiu emprego com a ajuda de amigos. Assim, a gente se levantou.

Fomos morar de favor no Itaim Paulista. Ninguém queria alugar casa para nós.

Começamos nosso próximo negócio. Hoje, temos uma mesa de corte improvisada e meu marido trabalha comigo. Cortamos e costuramos roupas, que vendo na feira.

A minha casa é alugada. Às vezes, temos que deixar uma ou duas contas para trás, mas comida na mesa não falta.

SORRINDO PARA VIDA

Eu não sorria, era sempre triste, amarga e fechada.

Entrei em depressão e fui pedir ajuda em uma casa que auxilia mulheres. Conheci uma psicóloga e muitas outras pessoas boas.

Soube que uns dentistas iriam fazer uma triagem para cuidar dos casos mais preocupantes.
Eu sofria com dores de dente há pelo menos 12 anos.

Conheci dentistas que são verdadeiros anjos. Eles me deram uma segunda chance para sorrir e recuperar meus sonhos.

Durante três meses, fiz tratamento pelo projeto Apolônias, coloquei os dentes da frente e os molares em baixo e em cima.

Agora estou em uma nova fase, só quero ver a felicidade e esquecer os momentos tristes.

Não penso em retornar para Bolívia, porque me acostumei com o Brasil. Gosto daqui. Depois que tive minha liberdade, conheci gente boa.

Agora, sonho em colocar meu nome nas minhas roupas e abrir uma loja para dar uma vida melhor para os meus filhos.


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