Folha de S. Paulo


Não foi só a indústria que viciou o Brasil em 'junk food'

Reportagem de capa do jornal americano "The New York Times" e reproduzida por esta Folha analisou o consumo crescente de alimentos ultraprocessados no Brasil e o impacto para a saúde da população e da economia nacional.

Trata-se de um artigo duro para com a indústria de alimentos, definida pela matéria como a grande causadora da epidemia de obesidade no Brasil. Não que ela não tenha sua parcela de culpa.

Mas como uma das fundadoras do Cren (Centro de Recuperação e Educação Nutricional) –organização que aparece em destaque na referida reportagem como exemplo de serviço para tratamento nutricional– entendo que a indústria de alimentos não é a única responsável por esse mal que atinge mais de 2 bilhões de pessoas em todo o mundo.

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Produtos ricos em gordura estão entre os vilões da obesidade
Produtos ricos em gordura estão entre os vilões da obesidade

De fato, fico muito preocupada quando problemas tão complexos são descritos segundo parâmetros simplistas dos filmes de super-heróis onde as personagens são mocinhos ou bandidos!

Em 2015, participei de um laboratório de inovação social que conduziu 40 atores da mais diversas organizações e ramos de trabalho para refletir sobre o cenário da Alimentação e Nutrição no Brasil.

Durante o laboratório, deixamos de lado nossos papéis e posições institucionais e dialogamos com as diferenças e opiniões contrárias. Preconceitos e rótulos como 'entidade inimiga' abriram espaço para uma construção coletiva.

Importante fruto desse diálogo foi o Mapa do Ambiente Alimentar, que reconhece o papel da indústria de alimentos ultraprocessados como agente do crescimento da obesidade, mas considera outros fatores, tais como o processo de migração no país: de acordo com a Pnad (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios) de 2015, 78,3 milhões de brasileiros são migrantes.

ESCOLHA DO LEITOR

Distante de suas famílias, amigos e de suas raízes culturais, os recém-chegados procuram se adaptar à nova forma de vida.

A necessidade de homens e mulheres entrarem no mercado de trabalho para garantir o orçamento familiar e a consequente correria do dia a dia, por conta do tempo gasto no transporte público, fazem com que as famílias busquem alternativas para a alimentação de seus filhos.

Nesse contexto e sem as referências das redes de relacionamento, a mídia (presente nas casas de todos) oferece a resposta: "alimentos" prontos, vitaminados e de baixo custo.

Some-se a isso a insegurança pública, que provoca o confinamento dos filhos em casa, cujo principal lazer torna-se o mundo virtual dos smartphones, tablets e televisores.

Além disso, as periferias dos grandes centros caracterizam-se por serem desertos alimentares, ou seja, regiões em que o acesso a alimentos frescos e de qualidade está a mais de 400 metros de distância da residência.

Finalmente, em nosso imaginário popular (do Brasil e de toda a América Latina), obesidade não é considerada doença.

Ao contrário, trata-se de um sinal de saúde, especialmente em crianças!

Há alguns anos, estive no Haiti para assessorar um projeto de melhoramento agrícola que visava combater a desnutrição infantil. Enquanto fazia compras no mercado com o coordenador do projeto, ele encontrou uma conhecida, que o elogiou dizendo: "Puxa, como você está bem, engordou! ".

Faço questão de ressaltar que a desnutrição (obesidade ou subnutrição) é uma doença multifatorial muito mais complexa do que parece. Sua recuperação e prevenção exigem uma abordagem ampla.

Enquanto permanecermos na posição de procurar culpados para condenar, não chegaremos a uma solução! Em tantos anos de trabalho social e lidando com os mais diferentes atores nacionais e internacionais, aprendi que a solução é cultural e depende de uma mudança de consciência, com a revisão dos valores e de visão.

Não à toa, essas são as crenças que baseiam o trabalho do Cren na recuperação de crianças e jovens desnutridos.

O que aconteceria se parássemos de procurar os bandidos e analisássemos nossa real contribuição para a atual situação de nosso país, estado, cidade, bairro, de nossa casa?

Reflitamos por um momento: Quem estabeleceu que o sucesso de uma empresa ou de um país deve ser medido pelo aumento de lucros ou do PIB? Por que precisamos acumular tantas riquezas a ponto de, hoje, as oito pessoas mais ricas do mundo possuírem o equivalente ao que 3,5 bilhões de pessoas mais pobres têm?

O que aconteceria se a remuneração dos CEOs fosse calculada em termos do impacto socioambiental de suas empresas ao invés de em termos dos retornos financeiros obtidos? E se os governos fossem avaliados a partir da Felicidade Interna Bruta de seu país, à luz do que acontece no distante Butão?

E o que aconteceria se nos posicionássemos como verdadeiros protagonistas e passássemos a empregar nossa energia para construir o mundo em que desejamos viver hoje e que queremos deixar para nossos filhos?
Teríamos um mundo novo!

GISELA SOLYMOS é psicóloga e uma das fundadoras do Cren (Centro de Recuperação e Educação Nutricional), integrante da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais


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