Folha de S. Paulo


Privatização de terras públicas: a perversidade da medida provisória 759

José Cruz/Agência Brasil
O presidente Michel Temer no lançamento do Programa Nacional de Regularização Fundiária
O presidente Michel Temer no lançamento do Programa Nacional de Regularização Fundiária

A MP (Medida Provisória) 759 aprovada pelo congresso e sancionada pelo presidente Temer trata da regularização fundiária, isto é, se refere à propriedade da terra no Brasil.

A MP estabelece mecanismos para a titulação da terra de assentamentos rurais e de terras públicas devolutas. Portanto, regula a transferência de terras públicas para o domínio privado.

Avanços na regularização fundiária são urgentes no Brasil, inclusive para assentamentos rurais e para que agricultores familiares tenham acesso à politicas públicas. Ajustes na legislação são necessários, mas não com os desvios da MP 759.

A medida foi batizada como "MP da grilagem" porque legaliza a propriedade privada de terras públicas ocupadas ilegalmente na Amazônia, muitas com ocupação marcada pelo desmatamento, violência e mortes. Além disso permite a venda de lotes públicos de assentamentos.

Assim, possibilita que terras destinadas originalmente para a reforma agrária sejam apropriadas por grandes produtores e especuladores. É o inverso da reforma agrária, concentrando terra pela via menos ética possível. Por essa razão, a MP foi comemorada pela bancada ruralista e repudiada pelo MST (Movimento Sem Terra) e ambientalistas.

E devemos lembrar algumas coisas fundamentais que iluminam ainda mais as injustiças e perversidades da medida provisória.

Primeiro, o Brasil é um país muito desigual e com uma das maiores concentrações fundiárias do mundo. Isto é, poucas pessoas são donas da maior parte das nossas terras. Se uma distribuição mais equitativa da terra cunhou o desenvolvimento de países como os Estados Unidos e o Japão, seguimos na contra-mão da concentração e desigualdade que alimentam exclusão, pobreza e atraso.

Segundo, não precisamos de mais terras para o crescimento da nossa produção agropecuária e para a geração de riqueza por este setor. O crescimento é possível somente a partir da recuperação de terras degradadas e do uso responsável das terras já abertas, sem exigir revoluções tecnológicas.

O que está em jogo é a posse e o mercado de terras e não a produção nacional. Interessa a especuladores e para o acúmulo patrimonial de poucos. E estes poucos sujam a imagem dos outros produtores engajados em uso da terra e produção responsável e que buscam reputação no mercado internacional.

Finalmente, também não é necessário abrir novas terras para a reforma agrária. Aliás, isso nunca foi necessário.

A criação de assentamentos em projetos de colonização (ou da concessão e abertura de novas áreas públicas) somente ocorreu e predominou na dita "reforma agrária" brasileira porque nunca de fato aplicamos a nossa política agrária. Bastava aplicar o antigo Estatuto da Terra, de 1964, que determina que os imóveis rurais que não cumprem o seu papel social ou não alcançam uma produtividade mínima deveriam ser desapropriados.

Pela lei, terras de especuladores e produtores ineficientes ou irresponsáveis deveriam ser transferidas para agricultores familiares. Isso seria uma verdadeira reforma agrária que, combinada com uma inteligente política agrícola, resultaria em uma agropecuária produtiva e responsável, na conservação das nossas florestas e terras públicas e em uma distribuição mais justa da terra e da riqueza.

Mas a MP da regularização fundiária regulariza a ilegalidade, a concentração de terras e o desmatamento, repetindo a história da ocupação do Brasil desde Pedro Álvares Cabral.

A MP se soma ao projeto de lei da Floresta Nacional do Jamanxim para liberar áreas públicas protegidas e também transferi-las para o domínio privado de especuladores e criminosos, ignorando a nossa politica agrária, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, incentivando a ilegalidade e a violência no campo e reforçando a concentração da terra e a desigualdade em nosso país.

LUÍS FERNANDO GUEDES PINTO, engenheiro agrônomo, faz parte da equipe do Imaflora e da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais


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