Folha de S. Paulo


Há motivos para comemorar o Estatuto da Criança e do Adolescente?

Ao realizar uma pesquisa sobre a História do Estatuto da Criança e do Adolescente me deparei com uma experiência inusitada. Investigando em alguns jornais de grande circulação do país no dia da sua promulgação –13 de julho de 1990–, não encontrei registro sobre o acontecimento. Cheguei a estranhar e me perguntar o porquê da grande imprensa não noticiá-lo.

Passei a procurar nos dias seguintes, nas semanas seguintes, nos meses seguintes. Foi quando encontrei nos dias 12 e 13 de outubro de 1990 uma série de reportagens sobre o estatuto, noticiando que a lei passava a entrar em vigor naquela data.

"Tudo foi pensado direitinho", afirmou Margarida Procópio, ministra da Assistência Social, no ano de 1990. Segundo Procópio, o Estado brasileiro organizou estrategicamente o prazo de três meses para que a efetividade do estatuto tivesse início no dia em que o Brasil comemora o dia da criança, 12 de outubro.

Nos jornais pesquisados, encontrei notícias sobre as grandes mudanças trazidas pelo estatuto. A criação dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente e dos conselhos tutelares ganhava certo destaque.

Também foram registradas as dificuldades dos municípios para se adequarem às novas normativas legais e, o mais importante, a forma desta lei conceber as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos.

A partir de 1990, anualmente assistimos a uma série de mobilizações em torno das comemorações da promulgação do estatuto. Mas, por que comemorar o Estatuto da Criança e do Adolescente?

Enquanto historiador, penso que para além da comemoração, é necessário construir uma reflexão sobre a trajetória do estatuto, concebendo-o como um marco histórico, que fez mobilizar outra sensibilidade jurídica e política sobre os direitos da criança e do adolescente no Brasil.

Penso também que precisamos ter cuidados com as festividades, uma vez que há uma forte tendência de cristalizar a memória, produzir um discurso de celebração sem tecer as críticas necessárias para a efetivação dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes.

A historiografia contemporânea tem se preocupado com os usos políticos da memória coletiva, que, em alguns casos, ao celebrar a promulgação de uma determinada lei ou ato político, reproduz os interesses das elites política e econômica.

Não é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ele é fruto da mobilização da sociedade civil, da luta do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua e de instituições como a Visão Mundial, que antes de 1990 já vêm lutando por um mundo melhor para os nossos meninos e meninas.

Penso que a importância de produzir uma reflexão sobre a trajetória histórica do Estatuto deve estar atenta às mudanças trazidas pela lei, sem perder de vista as permanências. O que ainda temos do Código de Menores e da Febem-Funabem depois da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente?

Olhar para o passado é perceber que o presente nos exige outra atitude. Se o mundo mudou, precisamos mudar com o mundo. Como pensar hoje as crianças quilombolas, indígenas e ciganas? É necessário pensar as infâncias no plural, principalmente para quem tem a infância roubada.

É preciso perceber as mudanças do próprio estatuto. Ele não é o mesmo. Talvez se o estatuto fosse promulgado hoje, ele seria o Estatuto das Crianças e dos Adolescentes. Sim. Não há "a criança" e sim as crianças. Não há "o adolescente" e sim os adolescentes.

Volto-me para experiência da pesquisa histórica sobre o estatuto e vejo que a investigação nos jornais me levou a refletir que, para setores da imprensa, mais importante que a promulgação foi a efetividade da lei.

Percebo ainda que as leis só possuem sentido quando elas vigoram e provocam mudanças sociais. Como diz o poeta Carlos Drummond de Andrade, "as leis não bastam". Para além da comemoração da lei é necessário pensar a vida, afinal, como afirma o poeta "os lírios não nascem da lei".

Para isto, é importante olhar para o passado para entender melhor o presente. Talvez comemorar o estatuto seja importante para não se esquecer do Código de Menores e da Funabem-Febem que ainda se encontra presente nos nossos dias. Presente naqueles que defendem a redução da maioridade penal ou o aumento de internação, naqueles que não fazem garantir a participação dos meninos e meninas nos espaços de decisão.

Mais importante que comemorar a lei é garantir a vida. O estatuto, para além de uma lei, é um instrumento de luta pela vida digna para nossas crianças e adolescentes.

HUMBERTO MIRANDA, doutor em História e professor do Departamento de Educação da UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco)


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