Folha de S. Paulo


Das nascentes à correnteza: aliança amplia acesso à água no Brasil

"Não há força mais poderosa do que uma ideia cujo tempo chegou", escreveu Victor Hugo.

Segundo o IBGE, 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada no país. Se no semiárido enfrenta-se por seis anos uma das maiores secas do século, na Amazônia (onde está 11% da água doce do mundo) as famílias vivem em uma seca "molhada" cercadas por rios com água que não podem beber.

Apenas a estatística não dá conta de transmitir a situação dramática que isso representa na vida de pessoas e comunidades, é preciso um mergulho na realidade para ativarmos a empatia necessária para um movimento de transformação.

Na comunidade de Anã, localizada às margens do rio Arapiuns, água potável é uma novidade. Chegou em 2005 pela ONG Projeto Saúde e Alegria que atua há 30 anos na região. Antes da instalação de um sistema simples com poço, reservatório e bombas movidas a diesel e energia solar, duas a três crianças morriam por ano devido à diarreia e doenças relacionadas à água.

Neste caso, um investimento de R$ 150 mil evitou a morte de 42 crianças de 2005 para cá, em uma comunidade com menos de 500 habitantes. São 42 filhos como os meus ou os seus, 42 famílias impactadas, 42 novos futuros para a comunidade de Anã.

Além de mortes, a falta de acesso à água gera doenças e enormes custos para governos com ocupação de leitos de hospitais e postos de saúde, cloro, sua distribuição, ou gastos das famílias com remédios, galões de água, além do tempo perdido em coletar e tratar água, dias escolares ou de trabalho perdidos por conta de enfermidades. Tudo evitável.

Mesmo com estudos demonstrando que investimentos em água e saneamento possuem ótima relação custo-benefício e geram economias de US$ 5 a US$ 46 para cada US$ 1 investido, ainda hoje 50% dos projetos de água e saneamento na América Latina fracassam por focarem apenas em infraestrutura.

Soluções que não atendem a contextos locais ou modelos que não contam com viabilidade econômica para continuidade e expansão.

NASCENTES DE SOLUÇÕES

Enquanto uns lamentam, esperam ou procuram por culpados, um número crescente de pessoas e organizações tem arregaçado as mangas e "tirado água de pedra" para ampliar o acesso e tratamento de água de forma segura e viável para famílias e comunidades.

Apesar de pouco conhecidas por aqui, são iniciativas que atendem mais de 40 milhões de pessoas em toda América Latina, segundo o Banco Mundial, e vêm ganhando adesão no Brasil.

São as "organizações comunitárias de água e saneamento" ou "OCSAS", como são chamadas na América Latina, pequenas organizações (em sua maioria associações ou cooperativas) criadas e geridas pelas próprias comunidades para implantar sistemas de captação, tratamento e distribuição de água para suas famílias.

Nascidas muito antes de criarem termos como "negócios sociais" ou" negócios de impacto", as OCSAS realizam este trabalho de forma autossustentável, geralmente em áreas rurais ou de difícil acesso.

Neste modelo, as próprias famílias beneficiadas são clientes ou associados que pagam pequenas mensalidades (R$ 5 a R$ 25 por mês) para ter água tratada em suas casas.

Além de garantir água de qualidade de forma acessível e gerar receitas que cobrem sua operação e manutenção, este modelo também amplia a participação comunitária, a consciência em relação ao uso da água e reduz a dependência de recursos governamentais para sua operação e manutenção, algo crítico em momentos de crise como a que estamos vivendo.

Por serem e modelos maduros em diversos países (a América Latina já conta com mais de 80 mil OCSAS operando), estes atores passaram a se organizar regionalmente e realizar encontros anuais há cerca de nove anos com apoio da Fundación Avina.

Um processo que culminou na criação da Confederação Latino Americana de Organizações Comunitárias de Água, a CLOCSAS (http://clocsas.org/), hoje formada por membros de 21 países que se encontram anualmente em eventos que reúnem mais de 700 lideranças da região.

ENCONTRO DAS ÁGUAS E VOZES

Ainda praticamente invisíveis para o setor social e a sociedade brasileira, já existem algumas "pérolas" operando com modelos similares no Brasil.

São organizações como Sisar Ceará que atua em mais de mil comunidades e atende 500 mil pessoas; a Central Bahia, com atuação em 154 comunidades; o Projeto Saúde e Alegria, que atua em 150 comunidades ribeirinhas; e a Fundação Amazonas Sustentável, com atuação em mais de 500 comunidades do Amazonas.

Por irem além da infraestrutura, construírem laços de confiança com as comunidades e contarem com modelos de gestão e operação, estas organizações combinam know-how técnico e desenvolvimento comunitário para que o acesso à água aconteça de forma mais duradoura e sustentável.

São organizações que tratam as famílias como parceiras, clientes ou associadas, não beneficiadas passivas. É uma abordagem que constrói o sentimento de corresponsabilidade que impacta tanto na redução de custo para instalar sistemas (50% menor) através de mutirões como menor inadimplência e melhor cuidado com os equipamentos.

Além das citadas, a cada dia novos sistemas comunitários são identificados no país. Sejam fomentados por ONGs ou por técnicos de concessionárias de água apaixonados pela causa, são sistemas que ainda operam de forma desconectada, sem uma articulação enquanto movimento.

Mesmo que individualmente cada uma das organizações possua know-how, capilaridade e impacto relevantes, ainda são rios que correm em paralelo com ações e vozes individuais.

Com este pano de fundo –visando ampliar o impacto das organizações de acesso e fortalecer este nascente ecossistema– foi que nasceu o programa e Aliança Água+ Acesso.

Trata-se de uma coalização que integra o Instituto Coca-Cola Brasil, Banco do Nordeste, Fundación Avina, WTT (World-Transforming Technnologies), Instituto Trata Brasil, Sisar Ceará, Central Bahia, Fundação Amazonas Sustentável e Projeto Saúde e Alegria para atuar de forma conjunta em ações que vão além de infraestrutura para potencializar ações coletivas em prol do tema no país.

NA CORRENTEZA PARA MAIS ACESSO

Para ampliar o impacto das organizações de acesso à água, os parceiros da aliança realizaram um amplo diagnóstico conjunto onde definiram um conjunto de desafios que afetam o acesso à água segura para milhares de comunidades das regiões Nordeste e Norte.

Para identificar as soluções que melhor respondam a estes desafios foi lançada no início de junho, durante a Conferência ETHOS 360º, a 1a. Chamada de Soluções do Agua+ Acesso, um edital aberto e nacional para que inovadores, startups, empresas e desenvolvedores apresentem suas tecnologias através do site www.aguamaisacesso.com.br.

Pela Chamada com inscrições abertas até 7 de julho, serão investidos R$ 600 mil em até dez soluções com grande potencial selecionadas. Estas receberão apoio e investimento para implantação de pilotos em comunidades com os parceiros do Agua+ Acesso.

As soluções e modelos com melhores resultados poderão ser disseminadas e receber novos investimentos e apoio através dos R$ 20 milhões em investimentos já compromissados até 2020 pelo Instituto Coca-Cola Brasil e Banco do Nordeste para ações com este foco.

Já para fortalecer o ecossistema de acesso à água no país, aconteceu entre 24 a 26 de maio no Ceará o 1º Encontro Nacional de Gestão Comunitária de Água.

Realizado com apoio da Fundación Avina e Instituto Coca-Cola Brasil, o evento contou com 215 participantes de dez Estados, integrando gestores comunitários de água, ONGs, empresas e governos.

Além de contribuir para a troca de aprendizados e boas práticas, o encontro foi considerado um marco histórico no setor e essencial para definição de estratégias coletivas e parcerias para ampliar impacto e visibilidade no país e internacionalmente.

Em um cenário no qual em 2018 o Brasil sediará pela primeira vez o Fórum Mundial da Água, um dos principais eventos sobre o tema no mundo.

No mesmo espírito da água, que percorre, contorna, se mistura e inunda por onde passa, temos que ampliar essa correnteza para que cada vez mais pessoas e organizações coloquem seus talentos e recursos em prol das 35 milhões de pessoas que não têm acesso à água tratada no país.

São 35 milhões de futuros e pessoas como eu e você, que dependem de mim e de você também.

RODRIGO BRITO é empreendedor social da Rede Folha e coordenador do Programa de Acesso à Água do Instituto Coca-Cola Brasil


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