Folha de S. Paulo


Doações para a Prefeitura de São Paulo: não há limites?

Chello - 25.jan.2017/Framephoto/Folhapress
O prefeito João Doria, à dir., recebe moto doada pela Yamaha para atuar nas marginais
O prefeito João Doria, à dir., recebe moto doada pela Yamaha para atuar nas marginais

Desde o início do ano, o empenho da nova gestão da Prefeitura de São Paulo para a obtenção de doações de empresas privadas tem sido objeto de elogios, mas, sobretudo, de preocupações.

Recentemente o tema ganhou destaque diante da cessão de espaço publicitário por empresa farmacêutica para a veiculação de banner do programa "Cidade Linda" durante jogo de futebol da seleção brasileira. E ainda pelo recebimento de medicamentos doados sem a completa observância da listagem estipulada pela política municipal de assistência farmacêutica.

Além disso, chamou a atenção a ausência de publicações prévias no Diário Oficial de todas as doações recebidas e, ao ter sido questionada sobre essa omissão, a prefeitura disponibilizou tabela no portal da transparência com informações incompletas de parte dessas doações.

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Nesse contexto, em março uma Ação Popular foi proposta contra o município de São Paulo e o prefeito João Dória, questionando a moralidade das doações empresariais. De acordo com os autores da ação, as empresas só atuariam na lógica da finalidade lucrativa e, por isso, não realizariam ações de solidariedade sem outras intenções.

A liminar foi negada em primeira instância e a ação ainda aguarda o desfecho no poder judiciário, mas já revela a importância de se conhecer os limites legais para o debate sobre o tema.

A união, os Estados e os municípios podem regular o recebimento das doações de maneira autônoma, desde que observem os princípios gerais aplicáveis às administrações públicas como legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade (art. 37 da Constituição Federal).

Na cidade de São Paulo, há previsão legal específica desde a gestão da ex-prefeita Marta Suplicy (Decreto nº 40384/2001) que autoriza o recebimento das doações privadas.

De acordo com esta norma, as Secretarias Municipais e as Subprefeituras de São Paulo ficam autorizadas –após análise jurídica– a receber bens e serviços em doação, sendo possível a inserção do nome do doador no objeto ou material de divulgação.

Para que a divulgação da marca ocorra, desde alteração normativa promovida pelo ex-prefeito Gilberto Kassab (Decreto nº 52062/2010), é necessária a anuência da prefeitura que avaliará se há o atendimento ao interesse público, considerando inclusive o valor dos investimentos e a área de divulgação da marca.

Fora esses cuidados, cuja observância deve ser explícita e constar nos canais adequados de transparência da gestão pública, as normas paulistanas que disciplinam as doações seguem o dito popular "cavalo dado não se olha os dentes" e não fazem qualquer exigência em relação ao perfil do doador ou especificidades do bem doado.

Ou seja, não exigem conhecimento sobre quem é o doador, a qualidade de suas práticas, sua reputação, qual é o tipo de consumo que o seu produto estimula, tampouco a natureza de suas relações com a administração pública ou com o gestor público da ocasião.

Por não haver preocupação expressa nas normas, o ônus do gestor público deveria ser ainda maior, pois, no exercício da sua discricionariedade, precisa ser capaz de demonstrar de maneira transparente a presença da ética na doação, assegurar que não há desproporcionalidade entre o bem doado e os benefícios –diretos e indiretos– em favor do doador, garantindo o atendimento aos princípios constitucionais e ao interesse público, tanto presente, quanto futuro.

É que, vale alertar, a divulgação da marca não é o único benefício imediato para o doador. Dentro do ambiente da licitude, a experiência com a prestação de serviços ou oferta de bens pode gerar vantagens competitivas para a empresa em eventual licitação que vier a participar.

Por essa razão não se poderia admitir, por exemplo, o recebimento de doações que acabassem por tornar a prefeitura dependente de um tipo de serviço fornecido exclusivamente pela empresa doadora. Isso faria com que a doação se apresentasse muito mais como uma forma indireta de venda de serviços e reserva de mercado do que um ato de liberalidade da empresa com propósito de colaborar com a gestão pública.

Em contexto de tantas desigualdades sociais, é importante fomentar esforços de governos, empresas, organizações da sociedade civil, movimentos sociais e indivíduos em prol da melhoria do espaço público, com observância dos princípios e das regras legais.

É por isso que cada vez mais espera-se que empresas tenham uma atuação socialmente responsável, ética e colaborativa. Algumas, inclusive, já começam a se alinhar a movimentos internacionais para dar um passo além e gerar impacto socioambiental positivo no exercício da sua própria atividade econômica.

Diante da influência que a aproximação com determinadas empresas pode causar em políticas públicas e no mercado consumidor, é preciso respeitar os limites legais e avaliar de maneira cuidadosa se há a presença do interesse público de maneira sistêmica em cada relação.

No campo da administração pública, há um modelo interessante proposto pela legislação que trata das parcerias com o setor sem fins lucrativos (Lei 13.019/2014), denominado Procedimento de Manifestação de Interesse Social que poderia inspirar as práticas do município de São Paulo e, quem sabe, um novo marco legal para as doações privadas aos entes públicos.

Por meio deste procedimento, a administração pública pode receber propostas de organizações da sociedade civil para a formalização de parcerias que podem envolver ou não transferência de recursos.

Pelo procedimento, é possível conhecer o perfil de cada organização interessada, quem são os seus gestores, se possuem algum vínculo de parentesco com servidores públicos, qual é o seu histórico de atuação, bem como identificar o escopo no qual há interesse de colaboração, se há relação com as atividades que são desempenhadas por aquela organização, eventuais custos, etc.

Essas são questões que, por meio de procedimento mais simples do que se conhece das concorrências públicas, permitem subsidiar o gestor público na tomada de decisão em bases mais seguras e transparentes, contribuindo assim para a democratização do acesso ao que é público.

Numa cidade como São Paulo, é preciso que a gestão da prefeitura tenha consciência do valor das interações com a iniciativa privada e que garanta, de maneira transparente, que essas relações se dão, desde a sua origem, até a geração dos seus efeitos a longo prazo, em benefício da coletividade.

ALINE GONÇALVES DE SOUZA é advogada no escritório Szazi Bechara Storto Advogados, parceiro do Prêmio Empreendedor Social, além de pesquisadora da FGV Direito SP e autora do livro "Empresas Sociais: uma abordagem societária"


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