Folha de S. Paulo


Omran e Aylan: o efeito da vítima identificável

Mahmoud Rslan/AFP
Omran Daqneesh, 5, foi resgatado em Aleppo, na Síria após ataque aéreo e gerou comoção
Omran Daqneesh, 5, foi resgatado em Aleppo, na Síria após ataque aéreo e gerou comoção

Temos sido sistematicamente expostos a imagens de pessoas mortas em genocídios, guerras, em fugas por refúgio, em ataques terroristas e noutros cenários de morte ou assassinatos coletivos. Estas imagens são terríveis, exibindo, muitas vezes, milhares de mortos. Sentimo-nos mal perante estes cenários.

Contudo, a verdade é que, apesar do sofrimento que geram, rapidamente recuperamos desse sentimento e, na maioria das vezes, pouco falamos sobre o assunto. A notícia corre na imprensa e pelas redes sociais, cria-se, de alguma forma, uma certa interpelação coletiva que, logo depois, é substituída por fotos de pratos de comida e selfies no Facebook.

Há poucos dias, a divulgação de fotos e vídeos do menino Omran Daqneesh, 5, que foi resgatado na cidade de Aleppo, na Síria, após um ataque aéreo, produziu uma tempestade de empatia em grande parte do mundo. O menino aparece coberto de pó, com sangue no rosto, e com uma expressão impactante de surpresa, tristeza e, no fundo, de indagação sobre tudo aquilo.

Um caso parecido ocorreu há um ano, quando o menino Aylan morreu afogado durante sua busca por refúgio. Ele tinha 3 anos, vestia uma camisa vermelha e calções azuis e foi encontrado e fotografado numa posição de submissão ao seu sofrimento. Depois, soubemos que o irmão e a mãe tinham, também, morrido nas mesmas condições, mas o certo é que nos interessamos muito menos por eles.

Estes dois casos são expressões práticas daquilo que ficou conhecido nas ciências comportamentais, especificamente na economia comportamental, como "Efeito da Vítima Identificável". A ideia central e simplificada é a de que há uma grande assimetria em nossos sentimentos quando estamos perante um caso com uma vítima identificada e quando estamos perante um caso com muitas vítimas.

Este efeito mostra-nos que tendemos a valorizar muito mais uma vida identificada do que a vida de milhares ou milhões de vidas na mesma situação. Este é um fenômeno descrito na última década por alguns cientistas comportamentais, como, por exemplo, Paul Slovic, Deborah Small, George Lowenstein e Tehila Kogut.

Nos experimentos comportamentais mais conhecidos, os participantes são separados em dois grupos e são desafiados a responder sobre situações diferentes.

Um dos grupos lê a história de milhares de crianças que estão em situação de risco num país muito pobre e, logo a seguir, os participantes são questionados sobre quanto estariam dispostos a doar para ajudar essas crianças. O outro grupo lê a história de uma criança identificada que está em situação de risco no mesmo país e, logo a seguir, os participantes são também questionados sobre quanto estariam dispostos a doar para ajudar.

Qual seria o resultado esperado? As doações para as milhares de crianças seriam maiores, ou, no limite, iguais às doações para a criança identificada. Certo? Não! Os participantes do grupo com os milhares de vítimas doaram metade do valor dos participantes do grupo com a vítima identificada.

Este efeito pode explicar, por exemplo, a nossa relativa passividade em casos de genocídios e a nossa pronta diligência em casos de uma vítima identificada na mesma condição.

O efeito da vítima identificável pode ser utilizado para mobilizar as pessoas para boas ou más causas. No entanto, talvez seja possível criar e desenvolver uma percepção do sofrimento coletivo mais adequada e mais realista, criando condições para uma ação individual e coletiva, mais eficaz e mais consciente. É um exemplo de "irracionalidade" ao serviço do bem.

CARLOS MAURO, fundador da CLOO (behavioral insights and nudging unit), professor da Católica Porto Business School e fundador do BEO Lab (Behavior Economics and Organizations Laboratory)


Endereço da página:

Links no texto: