Folha de S. Paulo


Clínica cidadã, um modelo autossustentável no setor 2,5

O início de ano sempre impõe ao trabalho social a necessidade de fazer contas para fechar o orçamento e dar continuidade às ações. Nesse cenário, há organizações que vivem apenas do investimento de empresas ou de pessoas físicas e outras que criam produtos ou prestam serviços e, assim, geram divisas para manter sua atuação sem custos para o beneficiário.

No meio dessas organizações, despontam também as instituições do chamado setor 2,5, híbridas porque atuam em prol da sociedade, praticando preços justos e gerando até lucros. O IME (Instituto de Medicina Especializada) se enquadra nesse último modelo e, com mais de 13 anos de história, está apto a compartilhar boas práticas e aprendizados sobre um modelo autossustentável na saúde.

Todo mês, cerca de 3.000 pacientes são atendidos em duas unidades, com nove salas cada, em Uberlândia (MG). Concebido a partir de um forte desejo de levar a medicina de qualidade a mais pessoas, o IME oferece atendimento médico-odontológico multidisciplinar, com consultas a preços acessíveis, de R$ 80, com direito a retorno em 15 dias.

Sem taxas de adesão nem mensalidades, seu foco é a população de baixa renda da cidade. Entretanto, pela sua boa avaliação, o instituto acaba recebendo pacientes de 70 municípios dos arredores (região do Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba). É comum prefeituras vizinhas bancarem as consultas para garantir que seus cidadãos não enfrentem filas de espera, procedimentos sem data e corredores lotados.

Foi exatamente com essa proposta de resgatar a autoestima e a dignidade dos pacientes que a clínica cidadã nasceu. Ela tomou forma na monografia de um curso de pós-graduação em gestão em administração e marketing em sistema de saúde na USP (Universidade de São Paulo). Até então era só o sonho de uma médica oftalmologista que deixava o consultório em alguns dias do mês para ir às zonas periféricas tentar detectar problemas de visão na população que não podia pagar consulta.

Hoje, a equipe do IME conta com 52 médicos de 25 especialidades e mais 24 funcionários da parte administrativa. Além disso, parceiros como centros de imagem, laboratórios de análise e centros radiológicos concedem descontos em procedimentos e exames. Mais de 200 mil pessoas já foram atendidas e seus históricos constam numa base de dados online que pode ser acessada a cada retorno e auxiliar em diagnósticos futuros. O índice de retorno espontâneo, aliás, supera 70%, pois os pacientes voltam buscando outras especialidades além da que motivou o primeiro atendimento.

Para o médico, o modelo de remuneração do IME, de 50% do valor de cada consulta, significa um complemento da renda e, ao mesmo tempo, uma oportunidade de ele beneficiar pessoas que não teriam como arcar com o custo do atendimento em seu consultório privado. Já o paciente tem importância e voz porque pode responder a um questionário sigiloso sobre a consulta e sua opinião é analisada pela equipe gestora e levada em conta na avaliação de desempenho dos profissionais.

Pela excelência no atendimento, famílias inteiras passaram a se consultar periodicamente nas clínicas, estabelecendo um vínculo virtuoso que ajuda a prevenir doenças ou a tratá-las em seu início, economizando, no futuro, gastos do sistema público de saúde. O volume de atendidos mensalmente no IME representa 10% do fluxo total do SUS em Uberlândia, contribuindo, portanto, para desafogar o atendimento público de saúde local.

Grande parte desse sucesso reside no modelo administrativo. Um sistema inteligente é usado no agendamento, por telefone e site, e na gestão das salas, organizando a circulação de médicos e o fluxo de pacientes e evitando sobreposições ou espera e consequente desgaste para quem será atendido.

Ao mesmo tempo, o paciente sempre pode registrar eventuais problemas em pequenos tablets, nos corredores, que gravam as reclamações. Falhas dos profissionais podem gerar novos ajustes e, se necessário, até o desligamento de quem não cumpre as normas de excelência. Outro ponto fundamental é o reinvestimento constante no aperfeiçoamento das clínicas, garantindo instalações organizadas e modernas. O IME está, inclusive, em processo de expansão, já construindo uma terceira unidade, ainda mais equipada.

No entanto, até alcançar esse patamar atual positivo, a instituição passou por percalços e ajustes. Ainda nos primeiros anos, por exemplo, o Ministério Público chegou a interpelar a clínica mais de uma vez, questionando seu modelo, até se certificar de que se tratava de um negócio diferente e não de um convênio médico. A sensibilização de um time de médicos comprometidos e motivados e a composição de um leque variado de especialidades, que continua a aumentar, também foram outros grandes desafios nessa trajetória, iniciada em 2001.

Permeando todo esse processo, sempre esteve presente a questão da alta carga tributária: configurado como empresa, o IME não conta com incentivos para atuar. Por meio deles, o governo poderia auxiliar em muito os integrantes do setor 2,5 a se aperfeiçoar, dando-lhes fôlego para beneficiar ainda mais brasileiros em diferentes campos, não só na saúde. Ainda assim, o modelo autossustentável da clínica cidadã está consolidado e pode ser compartilhado com quem quiser contribuir para uma sociedade mais justa, sustentável e saudável.

Jussara Matsuda, médica oftalmologista, diretora-presidente do IME - Clínica Cidadã, pós-graduada em gestão em administração e marketing em sistemas de saúde pela USP e finalista do Prêmio Empreendedor Social, em 2006, e vencedora do Prêmio Empresário Herói, da FIEMG (Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais), em 2011.


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