Folha de S. Paulo


Mulher cega 'lê' histórias para crianças na emergência de hospital no Rio

Arquivo pessoal
Marcela Mello, 40, é cega e conta histórias para crianças internadas em hospital do Rio
Marcela Mello, 40, é cega e conta histórias para crianças internadas em hospital do Rio

Com 18 anos, Marcela Mello prestava vestibular para medicina quando ouviu de um médico que ficaria cega em três meses. Desistiu do curso, mas não da ideia de trabalhar em hospitais.

Hoje com 40 anos e outras duas graduações, ela adentra a emergência do Salgado Filho, no Rio, como contadora de histórias, interpretando personagens e situações lúdicas, para crianças e até bebês.

Os sintomas de retinose pigmentar, doença rara que degenera a retina, comum em pessoas de meia idade, começaram a aparecer quando Marcela tinha oito meses. A bebê já não enxergava a mãe se o quarto estivesse escuro. Sua dificuldade de ver à noite, porém, não a impediram de frequentar a escola e de brincar, na infância e na adolescência.

Já sem visão, ela concluiu as faculdades de relações internacionais e administração. Desde então, durante a semana, trabalha com recursos humanos de grandes empresas e dá palestras sobre a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.

Mas desde maio, ela dedica os sábados a outra missão. Coloca o avental da Viva e Deixe Viver. A ONG integra a Rede Folha de Empreendedores e ensina voluntários a ler para pacientes internados. Sem enxergar as palavras no papel, Marcela se compromete apenas em contar as histórias.

Ela pede ao marido que leia repetidamente os livros, ouve as narrativas no YouTube e usa um aparelho que faz a leitura dos textos para ela.

Assim, conseguiu gravar todas as falas de cinco histórias: "A Lobinha Ruiva", "Menina Bonita do Laço de Fitas", "O Gatos de Botas", " O Gato no Telhado", "Dudu e a Caixa" e "Até as Princesas Soltam Pum", preferida das crianças.

Quando entrou pela primeira vez no hospital, tinha receio de ter um branco ou de não ser aceita, mas a realidade a surpreendeu. "Eu falo 'a tia não enxerga' e as crianças não têm preconceito. Os pais, as enfermeiras, os médicos, todos me respeitam."

A carioca, que está sempre sorrindo, aprendeu ainda a não só repetir as falas dos contos infantis. Músicas, barulhos de chave, de chuva, de balanço do mar e de batidas na porta invadem as alas da emergência. "Hoje sei que eu posso fazer isso, me tornei mais segura. A gente acha que vai ajudar o outro, mas são eles que ajudam a gente", diz Marcela.

Ela também nunca pergunta o porquê de as crianças estarem internadas. "Não quero saber, estou ali para trazer um conforto, seja para um bebê, seja para uma criança acautelada [sob guarda da Justiça]."

As horas gastas com a nova tarefa dão também a sensação de dever cumprido. "Isso mudou minha vida. Ver o outro bem me faz uma pessoa melhor. E eu sou igualzinha a vocês, choro, rio, tenho alegrias, tristezas", brinca.


Endereço da página:

Links no texto: