Folha de S. Paulo


Jovem da periferia cria negócio para levar comida saudável a favelas

Aos oito anos, Hamilton da Silva, hoje com 29, viu a família de quatro irmãos se expandir. Sua mãe, Eliete da Silva, 54, alugou uma casa maior em uma favela em Nilópolis (RJ). Junto com uma colega da Igreja Batista, a dona de casa adotou 18 meninos que moravam na rua, aos quais costumava dar comida.

Hamilton se recorda da mãe indo para a praça do Cemitério, também na região metropolitana do Rio, levar sanduíches e suco para as crianças que depois acolheria e encaminharia na vida. "A gente dividia as roupas e tivemos a mesmo educação."

Saladorama

Dos irmãos adotivos, um virou chef de cozinha, por exemplo. Outros dois foram tragados pela violência que ceifa a vida de tantos jovens da periferia. "Eles fizeram escolhas diferentes e não tiveram outra chance."

Já o terceiro dos quatro filhos dos Silva seria o primeiro membro da família a entrar na universidade. Hamilton passou para engenharia de produção, na Universidade Veiga de Almeida.

Finalistas 2017

Para orgulho da mãe, entrou na empresa júnior do curso. Logo depois, batia ponto de terno e gravata numa consultoria.

"No meu aniversário de 21 anos, ganhei um terno chumbo. Para muitos, ganhar um carro era tudo, para mim era aquele terno. Representava a mesma coisa para minha mãe. Ela me entregou chorando", conta Hamilton.

Mesmo vestido como manda o figurino, Hamilton se sentiu um peixe fora d'água quando passou a conviver com colegas de classes mais abastadas no espaço de coworking onde começou a trabalhar, na zona sul do Rio. "Só tinha aluno da PUC [Pontífica Universidade Católica]. Meu chefe disse que eu poderia almoçar no local, e pensei que a comida ia ser sushi, hambúrguer, picanha."

LASANHA DE BERINJELA

Foi com estranheza que teve de encarar uma lasanha de berinjela, opção de almoço da turma adepta dos "verdinhos". Era algo que nunca ouvira falar. "Dei de cara com comidas que eu nem imaginava", conta. "Quando eu era criança, comia o que na comunidade se entende por salada : cenoura, tomate, alface, cebola. Só."

Ao questionar por que os colegas não comiam, por exemplo, carne todo dia, Hamilton se surpreendeu com a resposta de que era uma questão de saúde e não de dinheiro. O contraste com a sua realidade e com o subúrbio carioca era gritante.

"Numa reunião na comunidade [em São Gonçalo (RJ)], quando iam comprar pizza, falei para pedir lasanha de berinjela. Ficaram rindo, me chamando de playboy."

Após uma pesquisa informal, Hamilton percebeu que nem se quisesse haveria opções de alimentação saudável nas vizinhanças carentes onde cresceu.

Viu, então, uma oportunidade de negócio que originou o Saladorama. "Voltei para o coworking e falei para os meus colegas: 'Vamos vender alimentação saudável na favela, não tem ninguém fazendo isso.'".

Hamilton saiu do emprego de carteira assinada para se dedicar a sua nova ideia de negócio: ampliar a oferta para além do feijão com arroz e do "fast food" que caracterizam os hábitos alimentares da população de baixa renda.

"Minha mãe achou que eu estava maluco", lembra. "A expectativa da minha família era que eu ganhasse dinheiro. Algo que sempre faltava."

VIRADA DE MESA

Para dona Eliete, ver o filho desistir de um trabalho de executivo para empreender era um risco muito grande. "Como mãe, tinha preocupação. 'O que você está fazendo da sua vida? O que você quer com isso?'", conta ela.

Antes do nascimento de Hamilton, a empregada doméstica pernambucana decidiu ir para o Rio em busca de um emprego melhor.

Deixou os dois mais velhos no Recife com a avó, Julia Francisca da Silva, 82. "Minha mãe só voltou para buscar os filhos quando conseguiu trabalho", relata o empreendedor social.

A mudança para o Rio significava uma evolução para uma família de origem humilde. Em Pernambuco, a avó de Hamilton viveu por muitos anos em condições análogas à escravidão no canavial onde morava. "Ela trabalhava por um prato de comida."

Ele lembra que o destino das mulheres da família estava desenhado na cor da pele escura e na falta de oportunidades. "Minha avó trabalhou para madame, sempre servindo, e minha mãe estava indo por esse caminho, lavando roupa para fora na beira de mangue."

COMIDA EM PAUTA

Foi em sua avó materna também que o fundador da Saladorama se inspirou para criar o negócio social, presente hoje em cinco Estados.

Ao mesmo tempo em que Hamilton descobria uma forma diferente de se alimentar, dona Julia passava por complicações na saúde devido ao diabetes. Perdeu a visão do olho esquerdo e um dedo.

"Quando fui conversar com o médico, ele falou que se minha avó tivesse melhorado a alimentação não teria passado por isso", conta.

O diagnóstico básico foi um soco de realidade para o jovem. "Aquilo atingiu diretamente a minha vida. Senti a dor de não poder fazer nada vendo minha avó cega por falta de acesso à alimentação saudável."

Hamilton também percebeu que salada e alimentação diversificada não era pauta na favela. "Foi quando comecei a mostrar que alimentação é direito, não privilégio."

Entrou de cabeça no negócio, com apenas R$ 220 que recebeu da rescisão do trabalho. E lá se foi testar sua ideia. "Tinha que quebrar vários preconceitos tanto da sociedade quanto meus. Pegava as saladas e ia vender no ônibus."

Na linha 443, que liga São Gonçalo a Niterói, ele contava a história do produto. "Peguei esses alimentos no Ceasa, com o agricultor tal, e foi preparado pela fulana", lembra. "Depois eu perguntava: 'Quanto vocês acham que vale?'". 

Os primeiros clientes pagavam o preço que achavam justo. "Era para saber quanto as pessoas poderiam pagar e se realmente enxergavam valor naquilo."

A próxima parada após vender no ônibus foi abrir o primeiro delivery de saladas no morro Dona Marta, no Rio. Criado em comunidades desde que nasceu, o empreendedor social continuou dentro delas para entender seu público-alvo. "Ele não mora só na favela. Ele tem que favelar junto", conta Isabela Ribeiro, sua sócia e noiva.

Isso significa fazer parte do cotidiano dos moradores/potenciais clientes. "Fico um ou dois meses morando em cada nova comunidade. Vou jogar bola com o pessoal, conversar, saber o que fazem, o que comem." Depois de entender e se enturmar, Hamilton convida a galera fã de churrasco para experimentar algo diferente.

O desafio é fazer as pessoas entenderem os benefícios de uma alimentação saudável. Assim como ele foi criado, comer verdura era uma forma de castigo.

É onde entra o trabalho de conscientização feito pelas nutricionistas do Saladorama. As capacitações servem também para incentivar o empreendedorismo na área alimentar.  "A gente não ensina só a manusear ou melhorar os alimentos. Se as pessoas quiserem abrir um negócio, vamos juntos."

Ao incentivar iniciativas similares, Hamilton diz que não está criando concorrência, mas parceiros de missão. "É o legado que quero deixar. Alimentação é saúde pública. É a base de tudo."

E de favela em favela, o engenheiro empreendedor já expandiu seu trabalho para Florianópolis, Sorocaba (SP), São Luís e Recife, onde mora atualmente em Nova Descoberta, comunidade na zona norte da cidade. "Se me perguntar se ganho o mesmo que na consultoria, vou dizer que não, mas sou mais feliz hoje", conta sorrindo. "Sou feliz favelando." E comendo lasanha de berinjela.


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