Folha de S. Paulo


Mulheres são face oculta do trabalho forçado na moda, dizem especialistas

No mundo da moda, questões de gênero, imigração e dignidade no trabalho estão amarradas no mesmo nó. "O fenômeno migratório em São Paulo tem rosto de mulher, que é a maior consumidora da moda e está também na ponta da cadeia têxtil", afirma Soledad Requena, coordenadora de migração e gênero do Cami (Centro de Apoio e Pastoral do Migrante).

De acordo a instituição, há cerca de 300 mil bolivianos em situação de informalidade na Grande São Paulo. Números e realidade apresentados no "Diálogos Transformadores - Trabalho e Imigração na Indústria da Moda", debate realizado pela Folha e pela Ashoka, em parceria com o Instituto C&A.

Lídia Romero foi um dos casos inspiradores do encontro. Ela chegou ao Brasil em 2013, fugindo do desemprego da Bolívia. Trabalhava até 16 horas por dia junto com o marido em uma oficina de costura em São Paulo para ganhar R$ 700 no final do mês.

"E a pessoa não nos pagou por três meses", conta."É difícil sair [do trabalho análogo à escravidão]. Também estava errada de ir trabalhando nessas condições. Antes me pagavam R$ 6 por um vestido, que custava R$ 150 na loja. E agora estão pegando R$ 12 a R$ 17."

ESCOLHA DO LEITOR

A costureira hoje é dona da própria oficina, uma micro-empresa familiar. A mudança veio com a assessoria jurídica e técnica do Instituto Alinha, que trabalha com imigrantes em sua maioria e oferece cursos de empreendedorismo para a base da cadeia têxtil.

"Encontramos trabalhadores que trabalham 14,15 16 horas diárias e ganham de R$ 2 a R$ 2,50 por peça costurada para várias marcas conhecidas", relata Dariele Santos, co-fundadora do Alinha.

De acordo com dados da OIT (Organização Internacional do Trabalho), entre 85% e 90% da mão de obra do setor têxtil é feminina. "É um setor super importante para mulheres. Então é preciso promover o empoderamento delas", afirma Peter Poschen, representante do escritório brasileiro da OIT.

"Trabalhar com dignidade é trabalhar menos horas e ter tempo para meus filhos. Ir ao parque, cinema, coisas que antes não podia", diz Romero, que, apesar das dificuldades que passou, vê futuro na indústria da moda. "Espero que meus filhos sejam trabalhadores têxteis e que possam fazer a própria marca deles."

Segundo o Ministério Público do Trabalho, foram registrados 41 inquéritos civis por trabalho análogo à escravidão na Grande São Paulo, em 2016. Destes, 13 eram relacionados à confecções.

Para Edmundo Lima, presidente da ABVTex (Associação Brasileira do Varejo Têxtil), que representa as gigantes varejistas, a formalização é o caminho para promover condições de trabalho dignas na costura. Ele afirma que a grande pulverização, com muitas oficinas empregando poucos costureiros, e a informalidade do comércio dificultam a fiscalização e a adoção de boas práticas em toda a cadeia produtiva.

De acordo com dados da entidade, há hoje 30 mil empresas produzindo vestuários no Brasil para abastecimento local, sendo 97% delas compostas por micro e pequenas empresas. Além disso, um terço da produção é comercializada de maneira informal, por camelôs, sacoleiros e centros de comércio popular.

No entanto, o executivo afirma que não se deve estigmatizar o setor "tão importante em termos de geração de renda e de emprego e, principalmente, do emprego da mulher".

REFORMA TRABALHISTA

A reforma trabalhista e as mudanças nas leis de terceirização, no entanto, podem precarizar ainda mais o trabalho nas oficinas de costura, na avaliação do jornalista Leonardo Sakamoto, fundador da ONG Repórter Brasil, um dos protagonistas do debate, que contou com a presença de 120 pessoas no Teatro Folha, em 28 de setembro.

"Mais de 70% dos casos de trabalho escravo na Bahia, por exemplo, envolviam terceirização ilegal. A pobreza e a impunidade são a mãe do trabalho escravo e a terceirização é o pai."

Para Sakamoto, as novas regras de terceirização, que ditam os contratos de trabalho da maioria dos costureiros que atuam no Brasil, dificultariam a responsabilização de toda a cadeia produtiva em casos flagrantes de condições sub-humanas de trabalho. Além disso, a reforma enfraquece os sindicatos, que poderiam ajudar os costureiros na negociação com as marcas.

A opinião é compartilhada pela procuradora do trabalho Cristiane Lopes. "O Brasil infelizmente está optando por 'bangladeshizar nosso direito do trabalho, as nossas condições de proteção social", diz ela, em referência às más condições de trabalho do país asiático.

Já o presidente da ABVTex Lima defende a reforma e as mudanças na lei de terceirização, que, segundo ele, ajudariam na formalização do setor ao modernizar as relações de trabalho e dar segurança jurídica para subcontratações, que já existem na indústria.

Para Sakamoto as condições de trabalho só irão melhorar com a valorização e melhor remuneração das costureiras: "Quer saber como você resolve a questão do trabalho escravo na cadeia têxtil? Pague melhor para ela", disse, apontando para Romero.

"Diálogos Transformadores - Trabalho e Imigração na Indústria da Moda" teve apoio do Instituto C&A


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