Folha de S. Paulo


O homem que cresceu no lixo e fez dele seu meio de vida

A história de Carlos André dos Santos se confunde com o lixo. Aquilo que ninguém quer se tornou, ainda na infância, esperança na vida do pernambucano de 38 anos.

Carlos aprendeu a viver –e sobreviver– no antigo lixão da Mirueira, atualmente desativado e por muito tempo um dos maiores e mais violentos da região metropolitana do Recife.

Nesse local, na cidade de Paulista, ele passou de catador de lixo a personagem de uma história de transformações. Hoje, comanda uma cooperativa de catadores e trabalha para que o antigo lixão vire sede da primeira usina de resíduos sólidos do Norte/Nordeste.

No começo, o depósito de lixo era um meio de fuga dos maus tratos sofridos em casa. Ficava por lá o máximo de tempo possível. Dormia onde e como desse. Misturava-se às famílias que viviam na área, em condições degradantes.

Aos sete anos, a mãe biológica o abandonou. Entregou o garoto a uma vizinha. Como muitos naquela comunidade, Carlos nunca conheceu o pai.

"Minha mãe se apaixonou por um homem que batia em mim e em minha irmã. Foi numa surra violenta, com cipó de goiaba, que minha irmã de cinco anos morreu. Ela tinha problemas no coração e não suportou. Mesmo assim, minha mãe ficou com o padrasto e me deu para a vizinha, indo embora", conta.

Carlos André relembra que as coisas só pioraram a partir daí. No lugar de afeto, mais humilhação e violência. A "nova mãe" era ainda mais violenta.

"Passei a apanhar mais e mais, por qualquer coisa. Foi quando me enfiei no lixão. Muita gente tirava sustento de lá. Se não fugisse, iria morrer de apanhar, como minha irmã", afirma.

NOVA FAMÍLIA

A violência contra o menino era tanta que os próprios parentes da mulher decidiram tirá-lo dela. Carlos foi "adotado" pelo irmão da vizinha e sua mulher, morta no ano passado e tida como mãe verdadeira por Carlos.

"Eles tinham sete filhos e eram muito pobres, mas me acolheram. Ela foi muito boa para mim. Por isso fui para o lixão. Acordava às 4h e ia catar recicláveis nas montanhas de lixo. Às 11h voltava, tomava banho e ia para a escola. Sabia que só teria futuro assim", relata.

Na escola, mesmo entre crianças humildes, Carlos André era motivo de chacota. Era o "catador de lixo". "Além das condições desumanas, todos os dias morria alguém no lixão, por brigas entre pessoas que viviam lá ou desova de corpos. Havia muito tráfico de drogas. Era muito perigoso, mas era o emprego que possuía", relembra.

O catador evitou as brigas e conseguiu fugir das drogas que circulavam no lixão –cola, maconha e cachaça. Começou a estudar com dez anos e parou aos 14, na 4ª série. O primeiro registro de nascimento só veio aos 16 anos.

"Minha faculdade foi a vida. Aos 18 anos continuava no lixão, mas aos 25 anos entendi que precisava mudar aquela realidade. Por coincidência, um futuro prefeito de Paulista à época e a mulher dele, deputada estadual, começaram a propor uma mudança no lixão, acabando com aquele lugar e criando uma cooperativa. Foi quando minha luta começou para valer."

NOVA VIDA

Carlos André diz que ia a pé do lixão até a Assembleia Legislativa de Pernambuco, no centro do Recife –mais de 15 quilômetros, sem dinheiro para uma água. Tinha que acompanhar as discussões para desativar o lixão e garantir a criação da cooperativa. Temia que fechassem o local e colocassem as pessoas para fora, sem nenhuma assistência.

"Valeu a pena. Em 2006, criamos uma associação de recicladores e, em 2010, ela virou cooperativa. Tínhamos 350 associados e consegui salvar muitos amigos da vida errada", diz.

O lixão da Mirueira deixou de existir em 2009, e a prefeitura empregou boa parte das famílias na coleta de lixo.

Foi quando a cooperativa começou a ganhar força com o trabalho de coleta para reciclagem de plástico, papel e outros tipos de materiais.

Os trabalhadores da cooperativa agora não lidam mais com o lixo comum. Apenas o reciclável, coletado de diversas empresas privadas da Região Metropolitana do Recife.

O estigma por lidar com o lixo ainda existe, mas como os trabalhadores da cooperativa só tratam com resíduos sólidos (material reciclável), eles não têm mais contato com os rejeitos e, por isso, os riscos de contaminação são bem menores.

A cooperativa cresceu e atualmente recolhe, em média, 400 toneladas de material reciclável por mês. É uma das maiores da Grande Recife.

TRABALHO E LAZER

Carlos acorda todos os dias às 4h e organiza as funções de cada associado. A partir das 7h, todos estão a postos para o trabalho. O presidente da cooperativa define quem irá fazer a coleta, o carregamento e o descarregamento do material recolhido nas empresas parceiras.

A Coorjopa (Cooperativa de Catadores de Material Recicável João Paulino) fechou parceria com várias empresas, que fazem coleta seletiva em suas instalações e repassam o material, gratuitamente, à entidade. Os associados tiram um salário mínimo por mês. Em 2015, antes de a crise econômica apertar, o salário chegava a R$ 1.300.

Carlos procurou compensar a falta de estudo formal com cursos técnicos na área de sustentabilidade. Fez quase 30 deles –quem conversa com o presidente da Coorjopa percebe que domina o assunto.

Hoje, ele vive na cooperativa, no terreno do antigo lixão. Construiu uma casa e, de lá, vigia todo o material recolhido. Tem até um circuito de TV no único quarto do imóvel, para monitorar o material que eles recolhem nas empresas e armazenam na cooperativa.

A simplicidade e a vida modesta continuam. Seu ideal de um dia livre é passar pescando, mas acaba usando as folgas para consertar caminhões da cooperativa –adora mecânica.

Pai de três filhos –Aécio, 11, Herik, 13 e Emmilly, 14, todos matriculados em escolas públicas de Paulista–, Carlos se diz admirador dos empresários Antônio Ermírio de Moraes (1928-2014), fundador do grupo Votorantim, e Abílio Diniz, do grupo Pão de Açúcar. "São grandes empreendedores, que construíram fortunas com o trabalho."

Ele reconhece a "turbulência econômica grande" no Brasil, mas se diz otimista. "Tenho esperança de que tudo vai melhorar."

O que alimenta esse sentimento é o futuro que espera o antigo lixão, em fase final de obras para abrigar a primeira usina de resíduos sólidos do Norte e Nordeste –o projeto recebeu R$ 34 milhões de financiamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

"Com ela, nossa vida irá mudar porque o número de empregos esperado é alto (quase 500 após a conclusão). A cooperativa também deverá ganhar sede administrativa, relocação do galpão de reciclagem e uma balança para pesagem de caminhões. Ou seja, tudo vai ficar melhor", aposta.

Quem recebeu ajuda de Carlos reconhece o esforço. "Minha vida mudou graças a ele. Hoje tiro meu sustento do meu trabalho, crio meu filho, estou perto de casa e com perspectiva de melhorar", diz Leandro João da Silva, 23, um dos cooperados.

Para a dona de casa Elizabeth Maria da Silva, 61 anos, ex-moradora do lixão, o menino que vivia no lixão "tinha tudo para dar errado". "Mas conseguiu virar homem e traçar seu rumo. Hoje é um homem bom, que ajudou muita gente. Graças a Deus."


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