Folha de S. Paulo


Amigos reciclam uniformes em negócio que gera renda e dignidade

"Isso faz a gente se sentir humano de novo, valorizado. Se tivesse 100% de Jonas, o Brasil não estaria nesse caos. E, nas ruas, ninguém iria morrer por causa do frio."

A frase, do morador de rua Roberto Carlos Conceição, 38, com São Paulo registrando 9ºC e sensação térmica de 6ºC, às 23h, sob a marquise do Pacaembu, mostra como a criatividade do gestor ambiental Jonas Lessa, 25, e do biólogo Lucas Corvacho, 28, é capaz de transformar a vida de alguém.

Conceição perdeu um amigo na onda de frio do mês de junho na capital paulista, que vitimou pelo menos quatro pessoas. E estava feliz por ter recebido naquela noite uma manta impermeável –foram 1.440 distribuídas em parceria com a Entrega por SP–, que pode durar até dois meses.

Conheça a Retalhar

"Antes, a gente ganhava o cobertor 'Tony Ramos', que nos deixava cheio de pelo, não durava uma semana e, se molhava, não prestava mais."

A ideia da nova manta, produzida por costureiras de cooperativas a partir de retalhos de uniformes e material impermeável descartado, surgiu de uma das parcerias que Lessa e Corvacho firmaram desde o final de 2013, quando criaram juntos a Retalhar.

PARCERIA NO CARNAVAL

Os dois empreendedores se conheceram na infância, jogando taco na praia de Paúba, em São Sebastião (SP). E viram a amizade se fortalecer em 2012, quando encamparam duas missões.

A primeira delas era salvar o Carnaval no litoral. A segunda consistia em resolver um grande problema na empresa de confecções do pai de Corvacho, a Lutha Uniformes.

"Tinha um grupo que tocava no Carnaval de Paúba, mas, quando o líder saiu, ninguém se motivou a continuar. A gente se uniu mesmo, mobilizamos a comunidade e organizamos tudo. Foi um baita aprendizado", diz Lessa.

A parceria do samba deu tão certo que foi levada à empresa de confecção.

Lá, Corvacho, que estava de volta ao país após dois anos atuando como pesquisador na Austrália, já tinha implantado sucessivas melhorias, como horta, composteira, reaproveitamento de água, reciclagem e biblioteca.

Ele, entretanto, buscava solução para o descarte correto do resíduo têxtil gerado pela Lutha, que chegava a 500 kg por mês. "Era um problemão, porque o volume era muito acima do lixo doméstico. Tínhamos dificuldade, o coletor não queria pegar", diz o empresário Oswaldo Corvacho Filho, pai de Corvacho.

Foi quando o biólogo decidiu consultar Lessa: "Você tem algum amigo interessado em trabalhar com gestão ambiental empresarial?".

À época, Lessa trazia na bagagem influências de sustentabilidade do pai -o jornalista Savio de Tarso- e a experiência como voluntário na ONG Teto, além de cursar gestão ambiental na USP Leste. E, quando respondeu ao amigo, oferecendo-se de imediato para o trabalho, formou-se o primeiro fio da Retalhar.

"A percepção de que tínhamos um negócio se deu quando, numa rede social, uma pessoa da Latam buscava o que a gente oferecia", diz Corvacho. Ele explica que, naquele momento, foi possível perceber que a questão dos resíduos têxteis ia além da Lutha.

"A aplicação da lei não era efetiva, pois, como nós, muitos tinham dificuldade em fazer o descarte correto. E pensamos que isso poderia envolver outras pessoas e agregar muito mais."

NA MEDIDA DA LEI

Assim, ao mesmo tempo em que os dois amigos erguiam o Carnaval no litoral e mergulhavam no conceito de logística reversa e na lei 12.305, de 2010, que define a Política Nacional de Resíduos Sólidos e exige o descarte adequado de materiais (incluindo o têxtil), o samba da Retalhar começou a dar pé.

Na primeira ação, Corvacho e Lessa colocaram-se como ferramenta necessária para que grandes empresas cumprissem a lei, evitando a incineração ou o aterramento de uniformes descartados.

Depois, passaram a criar a cadeia de produção reversa, para dar nova vida a essas peças de roupa que seriam jogadas fora. "Pensamos, primeiro, em fazer sacolas de pano. Estava naquele momento de proibição da sacola plástica", explica Corvacho.

Mas, após contato com incubadoras, aceleradoras e negócios sociais, a ideia transcendeu. E a associação com costureiras e o conhecimento de como desfibrar os uniformes deram novos horizontes a Retalhar, com a produção de brindes, mantas acústicas e cobertores.

A união com 33 costureiras de Brasilândia, Campo Limpo, Barueri, Jardim Educandário e São Bernardo do Campo também atendeu a um anseio de Corvacho e Lessa.

Além de uma solução ambiental para o descarte dos uniformes, eles planejaram empoderar e melhorar a condição social da cadeia envolvida no trabalho da Retalhar.

"Quando a gente conheceu o Lucas e a Retalhar, compreendeu o que era logística reversa. Isso mudou nossa vida. Transformamos os retalhos e também a nós", diz Djenane Martins, 43, que trabalha com outras três costureiras na Charlotte Arte em Costura, no ABC paulista.

"Passamos a ser reconhecidas, fomos chamadas para eventos e já conseguimos até tirar um salário mínimo", diz.

Além de ajudar as costureiras a precificarem seus produtos e conduzi-las para palestras em clientes, Lessa e Corvacho firmaram outras parcerias, como a com o Pimp My Carroça, que atua com catadores de material reciclável.

"Muitos nos menosprezam, como se fôssemos invisíveis. Esse uniforme [da Retalhar] torna a gente visível, em especial à noite, protege e evita que eu pegue bactéria. Lavo e uso de novo, diferente de roupa nova, que na rua não dura uma semana", diz Gabriel Felipe Ortega Cazuza dos Santos, que atua na zona oeste de São Paulo.

Ele é um dos 440 catadores de material reciclado impactados pela Retalhar e vê paralelo entre sua atuação e a da empresa. "Os nossos trabalhos se parecem, pois pegamos o que ia para o lixo e ajudamos a dar vida nova."

MENOS CARBONO

Seja ao reaproveitar os uniformes, com segurança às marcas, seja ao transformá-los, a Retalhar já conseguiu evitar que cerca de 15,7 toneladas de tecido fossem aterradas e incineradas.
Isso representa economia na emissão de 231,2 toneladas de carbono equivalente -que corresponde ao replantio de cerca de 200 mil mudas de árvores- e quase 118 m³ de volume de aterro poupado. Além de ter gerado renda de R$ 85 mil aos parceiros.

Enquanto cresce -hoje são seis funcionários- e atrai gigantes de seus setores, como a FedEx (que replicará a reciclagem de uniformes fora do país), Leroy Merlin e concessionárias de rodovias, a Retalhar sabe que tem muito a fazer para que a cadeia têxtil trate os resíduos.

Só regiões como Bom Retiro, Brás e 25 de Março, na capital paulista, produzem 20 toneladas de resíduos têxteis por dia, que acabam em aterros. Esse cenário, inclusive, inspirou o nome Retalhar, que surgiu da chance de trabalhar o retalho e, ao mesmo tempo, retaliar essa situação.

O enorme desafio, porém, não intimida Corvacho e Lessa. Certos de que seguirão juntos, eles vislumbram até novos planos, como o de atrair a alta moda com os retalhos.

Agora, independentemente do que os dois venham a criar ou transformar, Conceição, o morador de rua, é assertivo: "Eu sei que, qualquer coisa que eles façam, vai ser boa. Se não for para a gente, vai ser para outras pessoas".


Endereço da página:

Links no texto: