Folha de S. Paulo


34,9% dos usuários do Bolsa Família não sabem sacar dinheiro, diz estudo

Beneficiária do Bolsa Família há três anos, Ruth Silva, 23, tem dificuldades para sacar no caixa eletrônico o pouco mais de R$ 100 que recebe por mês.

Moradora de São Fidélis, no norte do Estado do Rio de Janeiro, ela tinha dúvidas simples, desde como colocar o cartão, selecionar a quantia do saque e digitar a senha.

"Nunca tinha lidado com isso. Para receber [o benefício do Bolsa Família], prefiro ir direto à lotérica", afirma a dona de casa, que tem um filho de três anos e uma enteada de 12. O marido não tem renda fixa e trabalha como pedreiro e na lavoura.

Ruth faz parte dos 63,9% de 2.389 participantes de programas de renda de quatro municípios do Rio que não sabiam (34,9%) ou não se sentiam seguros (29%) em usar o cartão do beneficio em caixas eletrônicos.

Beneficiários com tais dificuldades foram convidados a participar de um treinamento promovido pela Fundación Capital, da Colômbia, que atua em educação financeira para a base da pirâmide.

Em parceria com o governo do Rio, foi realizada de setembro a dezembro do ano passado a Iniciativa Lista: Educação Financeira em Grande Escala.

O programa distribuiu tablets entre beneficiários do Bolsa Família e do Renda Melhor, iniciativa estadual, nos municípios de Búzios, Magé, São Fidélis e Nova Iguaçu.

Os usuários aprendem por meio de um aplicativo conceitos de educação financeira e ensinamentos práticos.

"Muitos terceirizavam o uso do caixa eletrônico", explica Camille Bemerguy, representante da fundação no Brasil. "No simulador, eles podem testar, errar, acertar e ir adquirindo confiança. Isso promove segurança para essas famílias e gera empoderamento."

Para aprender a mexer no caixa eletrônico pelo aplicativo, Ruth diz que "quebrou a cabeça". "Tinha medo de bloquear o cartão."

Assim como os outros participantes, a dona de casa ficou dois dias com o tablet em casa. E agora espera a hora de testar as novas habilidades no banco e se juntar aos 64% dos beneficiários que dizem usar o caixa eletrônico com tranquilidade.

POUPANÇA

Outro foco da iniciativa era ensinar as famílias a planejarem seu orçamento. "O projeto desmistifica que a população de baixa renda, por causa do recurso escasso, não consegue se organizar", afirma Camille.

O sonho de Adriana Souza, 44, que recebe R$ 67 do Bolsa Família, é construir uma segunda casa em seu terreno, em São Fidélis, para deixar para os filhos. Antes, no entanto, quer quitar dívidas.

"Estou mais controlada. Faço a lista do que gasto, vejo o que posso comprar", conta. "Agora, sei que vale comprar o produto mais caro porque rende mais."

Já Ruth, que completou o ensino médio, quer economizar para investir nos estudos do filho, para que ele consiga entrar em uma boa faculdade. "Já faço o planejamento. Aprendi a cortar os gastos desnecessários."

A exemplo de Ruth, 40,2% dos beneficiários ouvidos pela iniciativa de educação financeira pretendem poupar para educação da família. Outros 31,9% desejam investir em moradia, como Adriana.

Gastos com saúde (14,2%), investimento em negócio próprio (8,2%) e velhice (5,5%) são as outras intenções citadas.

O estudo detectou que a dificuldade em guardar dinheiro se deve a uma percepção de que não se pode poupar pequenas quantias.

"Eles viram que é possível economizar mesmo tendo pouco. Já me falaram: 'Se eu guardar R$ 1 por dia, vou ter R$ 30 no fim do mês para comprar um bolo de aniversário para o meu filho'", relata a estudante de serviço social Natanny de Souza, 23, pesquisadora que fez o trabalho de campo.

Apenas 26,9% dos entrevistados dizem fazer poupança mensalmente. Após as lições do programa, o percentual dos que pretendiam poupar a cada mês subiu para 55,1%.

"Acho que seria até criminoso dizer para uma população que recebe tão pouco consumir menos para poupar. Quando a gente fala de poupança, é no sentido de se planejar", afirma Camille.

Segundo ela, tal planejamento já acontece entre os beneficiários de programas de transferência de renda, mas de maneira pouco efetiva. "Quando recebem um recurso, automaticamente separam o que vai para educação, para emergência. A gente quer que passem a fazer isso de forma mais eficiente para alcançar objetivos."

A iniciativa começou na Colômbia, onde a Fundación Capital atua desde 2009. Lá, virou política pública. "Talvez isso também aconteça no Rio. Nos outros Estados, ainda estamos conversando", explica Camille.


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