Folha de S. Paulo


Intelectual da favela cria rede para desenvolver potencial de comunidades

"Meu trabalho tem tudo a ver com a minha origem." É assim que Eliana Sousa Silva, 53, explica como construiu o próprio chão: de retirante nordestina a fundadora da Redes de Desenvolvimento da Maré.

A organização da sociedade civil foi criada há 18 anos com uma proposta de fazer um trabalho estruturante que tem profunda empatia com as lições e ideias adquiridas por Eliana nesta trajetória.

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Com 129 mil moradores (maior que 80% dos municípios do país), o Complexo da Maré se divide em 16 comunidades com problemas sociais e urbanísticos típicos das favelas brasileiras, agravados por uma peculiaridade: foi loteada por quatro grupos criminosos armados, em constante conflito entre si e com a polícia.

DOUTORES DA FAVELA

Da região do Cariri, na Paraíba, Eliana e sua família foram expulsos do sertão pela seca em 1969. Aos sete anos, ela, os pais e os cinco irmãos deixaram um sítio e se instalaram em uma casa de 25 m² na Nova Holanda, na Maré. O choque entre as paisagens e as diferentes misérias moldou a vida e a luta de Eliana.

"Meu pai prendia muito a gente. Tinha medo." Com isso, os seis filhos de João e Maria Aleixo foram criados entre a casa, a escola, a igreja e o armarinho do família, no andar térreo, onde cada um cumpria um turno de três horas diárias no balcão.

Seu João, apesar de semi-analfabeto, dava grande importância aos estudos. O rigor pode estar por trás de uma estatística familiar fora do comum naquelas paragens: seus seis filhos fizeram curso superior, quatro concluíram o doutorado.

Eliana é um deles, e se tornou professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Boa aluna, desde os 12 anos ela dava aulas de reforço para colegas e vizinhos. Aos 14, era professora de catecismo na igreja que os pais ajudaram a construir.

Foi na paróquia que, em 1979, a jovem experimentaria sua primeira "tomada de consciência", quando sanitaristas da Fundação Oswaldo Cruz procuraram a comunidade religiosa para fazer uma pesquisa na Maré.

Entre os agentes comunitários selecionados para o projeto estava Eliana, então com 17 anos. "Quando comecei a bater na porta das pessoas, entrei em contato com uma realidade que estava do meu lado, mas da qual não tinha noção", lembra. "Não percebia que para sobreviver na precariedade da falta de água, de esgoto, de luz havia relações de poder, muitas vezes corruptas."

CHAPA ROSA

A favela se espalhou sobre os manguezais em casebres e palafitas. Foi nesse cenário de precariedade total que "Eliana do armarinho" iniciou uma campanha para criar a Associação de Moradores da Nova Holanda. "Foi assim que nasceu a Chapa Rosa, só de mulheres."

Ela venceu o pleito, aos 22 anos, com larga vantagem. "Foi uma coisa muito bonita. A ditadura estava no fim, teve festa. A gente se sentia com poder de mudar."

Nos seis anos à frente da associação, Eliana obteve conquistas como a implantação de energia elétrica, de coleta de lixo, e de uma rede de água e esgoto.

"Com o tempo, entrei em crise com meu papel porque percebi que os serviços conquistados por nós eram de baixa qualidade. O acesso não garantia o direito pleno."

Foi nesta época que Eliana conheceu seu companheiro de vida e de luta, o geógrafo Jaílson de Souza e Silva, 55, hoje professor da UFF (Universidade Federal Fluminense) e diretor do Observatório de Favelas, organização dedicada ao estudo e à proposição de políticas para favelas, com quem teve um filho e criou outros dois.

"Foi um momento de descoberta de um projeto conjunto de vida e atuação: somos favelados e temos uma identidade ligada às questões das favelas", diz Silva. "A gente queria construir nexos entre a favela e a cidade. E criamos uma organização social juntos por falta de outros caminhos, como partidos ou associações de moradores."

Com a ajuda dele e de um pequeno grupo ligado à Chapa Rosa, Eliana fundou a Redes de Desenvolvimento da Maré e criou seu primeiro trabalho estruturante, ao descobrir que apenas 0,5% dos habitantes da Maré tinham curso superior.

Em 1996, ela criou um pré-vestibular comunitário cuja primeira turma, de 90 alunos, teve 33 aprovados em universidades públicas.

"Fui muito criticada por ter escolhido trabalhar com alunos do Ensino Médio e não com crianças. Minha estratégia foi de elaborar uma inteligência local de curto prazo, gente que pudesse voltar para a organização e contribuir", explica Eliana.

Hoje, o projeto soma mais de 1.300 moradores da Maré aprovados em cursos superiores, o que faz desta a favela carioca com maior proporção de pessoas com ensino superior completo. "Hoje temos ex-alunos que se tornaram mestres, doutores e até professores universitários. Isso é impacto estruturante, é mudar indicadores sociais", orgulha-se.

O marido endossa o caminho trilhado: "Sempre definem a favela pelas suas negatividades. E nós criamos um discurso novo, da favela como espaço de potência e de criatividade, apesar de o Estado ainda não tê-la reconhecido como espaço de cidadania".

O criador do Observatório de Favelas critica ainda o fato de os moradores serem tratados "como a população civil do Exército inimigo".

(IN)SEGURANÇA PÚBLICA

Eliana também comprou essa briga na Redes da Maré. "Foi algo que se impôs. Percebi que nenhum direito será garantido plenamente sem trabalharmos a segurança pública como direito."

A recorrência dos confrontos na área levaram Eliana para o doutorado na área da segurança pública, concluído em 2009.

Sua pesquisa, que traz relatos de casos mesclados com entrevistas com moradores, policiais e traficantes sobre a atuação das forças de segurança, virou um livro.

"Testemunhos da Maré" traz na capa uma foto impressionante do momento em que um tiroteio tem início enquanto Eliana concedia uma entrevista na Maré: na imagem, todos estão correndo, ela inclusive.

"É inaceitável que o Estado deixe toda essa população sob o jugo de grupos criminosos que dominam o território, determinam relações", diz.

Eliana morou na Maré até 1995. Cansado da violência, Jailson deu um ultimato à mulher, dizendo que se mudaria e levaria o filho com ele. Ainda assim, quando sabe que há incursão policial programada, amanhece nas ruas da Nova Holanda.

"Essa maluca outro dia me acordou 6h para que pegasse minha câmera e acompanhasse uma operação do Bope, a pé, com ela", conta o fotógrafo Bira Carvalho, 45. "Eles já tinham matado nove pessoas, entre traficantes e moradores, mas nossa observação e nossos registros, intimidaram a ação deles."

Para Gisele Martins, 27 anos, coordenadora da Redes desde 2012, a frase de Bertold Brecht que acompanha panfletos, cartões e que está no muro da sede da organização é o que melhor resume o espírito empreendedor de Eliana: "Nada pode parecer impossível de mudar".


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