Folha de S. Paulo


Grafiteira saí do subúrbio e ganha os muros do mundo com arte e militância

Panmela Castro, 34, escolheu um vestido rosa choque tomara que caia, que deixava à mostra a tatuagem de flor de lótus no ombro direito, para chegar à abertura da sua exposição, "Eva", no centro do Rio de Janeiro, em julho.

No meio do evento, a artista plástica fez um pedido à irmã Artha: "Uma tesoura". Em seguida, passou o objeto para uma visitante da mostra de suas 75 obras, que relacionam a Eva bílbica com a mulher contemporânea. "É para você começar a cortar o meu cabelo e depois passar a tesoura para outra pessoa", instruiu Panmela.

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A carioca se despiu dos longos fios tingidos de louro e passou a exibir uma careca lisinha. Trocou, em público, o reluzente vestido pink por calça e camiseta pretas.

Em uma hora de performance, a fundadora da Rede Nami, associação que reúne grafiteiras e militantes que usam as artes urbanas para promover os direitos das mulheres, desconstruiu a imagem de Eva. "Eu me caraterizava hiperfeminina como uma caricatura."

O que Panmela não imaginava era que o ato teria reflexos em seu casamento. Seu então companheiro, com quem estava há três anos, condenou sua ação radical. "Ele disse: 'Não quero ficar casado com uma mulher que corta o cabelo, choca e fica nua'", relata. "Priorizei meu trabalho a um relacionamento tradicional."

Uma atitude coerente para quem sempre procurou fugir do conservadorismo de uma família de classe média baixa do subúrbio. A garota criada "de casa para escola, da escola para casa" se tornou expoente da efervescente cena brasileira do grafite ao promover uma série de rupturas.

O sonhado sopro de liberdade não veio com o ingresso na Escola de Belas Artes da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), aos 17 anos. "Eu não era tímida como diziam, era oprimida."

COM OS BAMBAMBÃS

Panmela buscava um meio de se comunicar e foi encontrá-lo em Itacuruçá (a 93 km do Rio), para onde se mudou quando a família faliu.

Passou a conviver com "bambambãs da pichação". De cara, se destacou. "Depois da primeira pichação, os caras vieram apertar a minha mão de igual para igual. Isso me deu uma sensação tão poderosa, que embarquei."

Clandestinamente, a princípio. Para escapar da vigilância materna, dizia que ia dormir na casa de amigas e pegava um ônibus para o Rio. Passava as noites pichando frases de contestação em muros e assinava com o codinome Anarkia Boladona.

"A cena era marginalizada. Tinha muito envolvimento com baile funk, brigas, drogas, tráfico, assalto", diz ela.

O que mais fascinava Panmela era a sensação de liberdade que nunca lhe fora permitida. "Quando se pertence a um grupo que não está delimitado às regras impostas, você vira o dono do mundo."

Descoberta pichando por um sargento, Panmela foi levada para morar com uma tia. Sua mãe, Elizabeth Silva, temia que fosse morta.

"Eu queria que elas [as filhas] fossem tudo o que eu não consegui ser", justifica.

"Eu odiava a forma como a minha mãe me obrigava a fazer as coisas. Pensava em estudar muito para sumir dali", rebate Panmela. Pouco tempo depois, foi morar sozinha na favela de Manguinhos.

MÚLTIPLAS VIOLÊNCIAS

Na rua, a grafiteira diz ter sofrido inúmeras violências: sexual, policial e institucional. "Tomei muita porrada. Tem policial que fica com peninha de ver mulher pichando e tem aquele que acha que ela é vagabunda e, em vez de bater nos caras, bate nela."

Foi em uma "missão" (gíria usada como sinônimo de sair para pichar) que Panmela conheceu o primeiro marido, ambos então com 20 anos. Em pouco tempo, uma nova faceta do parceiro se revelaria: a violenta.

As brigas aconteciam por causa da execução dos serviços domésticos. "Ele queria que eu fosse uma dona de casa perfeita." Panmela, que à época era professora e estudante, conta que suportava em silêncio. "Ele me torturava debaixo do chuveiro frio, colocava fogo no spray de inseticida exigindo que eu cuidasse da casa."

Não tardou para a agressão física. Segundo a artista plástica, ele se sentia incomodado quando ela se preparava para ir à faculdade. "Quando eu abria o guarda-roupas, ele reclamava que eu o acordava. Então, um dia dobrei o pijama e deixei na sala." A estratégia não funcionou. "Ele disse que aquilo era uma falta de respeito e começou a me bater."

Como em um ritual, ela lembra dele trancando a porta e colocando a música em volume alto para os vizinhos não escutarem seus gritos.

No dia seguinte, Panmela precisou ser levada a um hospital. A versão dada foi a de ela que teria sido atropelada.

Após uma semana em cárcere privado, a grafiteira se aproveitou de um descuido do parceiro e ligou para a irmã pedindo socorro.

Resgatada pela mãe, foi direto para a delegacia. "Na época, em 2004, não existia a Lei Maria da Penha, não aconteceu nada", conta.

O ex-companheiro acabou assassinado um ano depois.

Panmela desenvolveu fobia à altura, o que não a permitia mais escalar os lugares altos para deixar sua marca nos muros do Rio.

TERAPIA DO GRAFITE

Aos 24 anos, a artista plástica vivia deprimida, trancada em casa. "Estava completamente destruída por causa da separação." Pammela já tinha boa noção de desenho, recebeu um convite de um amigo para grafitar. "Foi o grafite que levantou minha autoestima."

Ela já chegou na cena, majoritariamente masculina, como a famosa Anarkia Boladona da pichação. "Eu era quase uma lenda."

Dois anos após a iniciação, Panmela concorria ao Prêmio Hutúz, ao lado dos maiores artistas do Brasil. Ganhou o título de "destaque do grafite", em 2007, e de "grafiteiro da década", em 2009.

Aos poucos, as temáticas feministas foram impregnando a arte da grafiteira premiada. "Passei por muitas situações de machismo no grafite."

O engajamento foi o embrião da Rede Nami. Graças à metodologia inovadora no trabalho com direitos humanos usando a arte de rua, Panmela foi laureada com o Vital Voices Global Leadership Awards, prêmio organizado pela presidenciável norte-americana Hillary Clinton.

Ao lado da presidente Dilma Rousseff, a grafiteira brasileira entrou em 2012 para o rol das "150 mulheres que abalaram o mundo", segundo a revista norte-americana "Newsweek".

Um reconhecimento pela arte autobiográfica e pela militância que fez da artista também uma empreendedora social. Panmela produz um trabalho que dialoga com a paisagem urbana, os padrões da sociedade em relação à mulher e a sexualidade. E já levou seu grafite para Estados Unidos, Canadá, França, Alemanha e Israel.

"Ganhei muita visibilidade e o respeito da rua. Então, achei que poderia usa tudo isso para fazer algo por mulheres que como eu foram vítimas de violência."


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