Folha de S. Paulo


Jovens criam fábrica de óculos de grau e doam as peças para pacientes do SUS

Criado em um orfanato de São Paulo e adotado por uma família de Brasília, o paulistano Alex Sandro dos Santos, 34, fugiu aos 11 anos de volta para a capital paulista em busca dos parentes biológicos. Após duas passagens pela antiga Febem (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor, atual Fundação Casa), foi preso aos 18 anos por assalto à mão armada. Sua pena: uma década em que passou por seis cadeias diferentes.

"A única coisa que eu queria era mudar minha vida", conta Santos, sobre quando retornou à liberdade, em abril de 2014. Conheceu a Renovatio, uma Oscip (organização da sociedade civil de interesse público), e se integrou ao projeto Ver Bem, onde recebeu oportunidade de trabalho e de desenvolvimento educacional e cultural. Foi aí que sua vida começou a mudar.

A organização –formada por 35 voluntários, alunos de economia e administração do Insper (Instituto de Pesquisa e Ensino)– há pouco mais de um ano produz óculos de grau feitos com uma tecnologia de baixo custo. As peças são doadas para pacientes com receitas do SUS.

Para a produção, a Renovatio contrata pessoas em situação de vulnerabilidade social, como ex-presidiários, refugiados e moradores de comunidades. Eles também desenvolvem atividades educacionais, culturais e plano de carreira para os beneficiados.

"Isso [o projeto] é meu alicerce, que me dá oportunidade de me reerguer e mostrar que sou capaz e que posso ajudar alguém", afirma Santos, que produz 30 óculos por semana, atende os pacientes que chegam ao Instituto da Visão, recebe R$ 800 por mês e se prepara para realizar o sonho de cursar gastronomia.

Para fazer parte do projeto Ver Bem e ser beneficiado com a bolsa que varia de R$ 800 a R$ 1.400, é preciso obrigatoriamente estudar e fazer as atividades culturais propostas pelos membros da Renovatio, desenvolvidas por um professor de história. Cerca de 50% do valor da bolsa depende do desempenho nos estudos, atividades culturais e da meta de produção de óculos de cada um.

"O principal objetivo é que essas pessoas estudem, trabalhem as habilidades linguísticas, o pensamento crítico e a erudição para que, assim, consigam escolher um caminho para seguir na vida", explica Fábio Rodas Blanco, 22, presidente e cofundador da Renovatio.

No elo educacional, os beneficiados que não são plenamente alfabetizados passam por curso de letramento para depois seguirem os demais estudos. Eles devem se preparar para o vestibular ou carreira técnica. Testes vocacionais e entrevistas também são realizados para indicação de cursos específicos para a carreira almejada.

Idas a museus e cine debates, por exemplo, estão incluídas na parte cultural. Além disso, cada beneficiado tem a meta de produzir sete óculos por dia.

"Não queremos que a pessoa entre no projeto para ficar produzindo óculos para sempre, a permanência dela é de no máximo três anos. Queremos desenvolvê-la para que empreenda, consiga um emprego que pague mais que o projeto e que saia mais autônoma de que quando entrou", diz Blanco. Conforme um beneficiado deixa o projeto, abre vaga para o outro.

TECNOLOGIA ALEMÃ

Desde fevereiro de 2014, a Renovatio é o braço no Brasil da ONG alemã One Dollar Glasses, criadora da técnica. Com a tecnologia, é possível fabricar óculos feitos de aço, plástico hipoalérgico e lentes de policarbonato por U$ 1 (cerca de R$ 3,60). No entanto, incluindo as taxas de impostos para importar o material e os custos com o beneficiado, cada um sai por R$ 25 para os brasileiros.

Pessoas com diagnóstico de miopia, hipermetropia, presbiopia podem receber os óculos.

Para a distribuição em São Paulo, a Renovatio mantém uma parceria com a Escola Paulista de Medicina, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), com o Instituto da Visão e agora também com a Faculdade de Medicina do ABC, que divulgam o trabalho e indicam o posto de distribuição e fabricação, que fica no Instituto da Visão, os pacientes.

A parceira com os órgãos públicos acontece por meio do oftalmologista, presidente do Instituto da Visão e professor da Unifesp, Rubens Belfort, que atestou a qualidade do material. "Isso [distribuição gratuita de óculos] já acontece em muitos países do mundo. Não adianta o SUS disponibilizar a receita dos óculos e não os entregar à população. Os pacientes não têm dinheiro para comprar óculos que custam R$ 500", diz.

Para levantar o capital inicial, os alunos realizaram um crowdfunding (financiamento coletivo on-line) por quatro meses e conseguiram levantar R$ 45 mil. A proposta era que, a cada R$ 25 doados, um par de óculos seria entregue a quem não pudesse comprar. Em pouco mais um ano, mais de 1.400 óculos foram doados para pessoas de São Paulo, de comunidades ribeirinhas do Pará e de regiões pobres da Bahia.

RECOMEÇO

A diarista Maura Lima, da cidade de Cansanção, no interior da Bahia, está há um mês aprendendo o novo ofício para se tornar uma das beneficiadas na comunidade Vila Nova Esperança, extremo sul paulistano. Lá, a pedido dos moradores, funciona a segunda fábrica da Renovatio e é onde Maura vive há seis anos com seu esposo e filho de seis anos.

Ela faz diárias por R$ 120, incluindo o transporte, em casas de regiões nobres de São Paulo, mas, agora, pretende mudar de profissão. "Quero ficar aqui porque o serviço de doméstica é muito pesado. Depois, quero fazer um curso na área da beleza", conta.

Para o futuro, os universitários pretendem expandir e tornar os negócios autossustentáveis. Em parceiras com algumas ONGs de todo o país, os óculos passarão a ser comercializados em uma plataforma on-line a preço de custo, R$ 25. O valor será revertido parte para o projeto e parte para a organização que ceder espaço e um computador com acesso à internet para o consumidor.

O atendimento e acompanhamento educacional será terceirizado para que mais pessoas possam ser beneficiadas.


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