Folha de S. Paulo


Organizações ligadas a doenças raras sofrem para captar recursos

Nas últimas semanas, o "Ice Bucket Challenge", ou desafio do balde do gelo, como ficou conhecido no Brasil, tomou as redes sociais com apoio de diversos famosos. A campanha arrecadou U$ 53 milhões em doações somente nos Estados Unidos, para a ALS Association -organização dedicada à causa-, e chamou atenção para a esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença rara e degenerativa.

No mesmo período do ano passado, a organização havia arrecadado só U$ 1,7 milhão. Segundo especialistas, o grande sucesso do desafio se deu por conta do apoio em massa de famosos, como Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, do ex-presidente dos Estados Unidos George W. Bush e de uma campanha de marketing eficiente.

Renato Stockler/Na Lata
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Outras ONGs e associações que também tratam de doenças ou causas raras e com menos apelo sofrem para conseguir doações. Na Abrale (Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia), as doações espontâneas de pessoas físicas representam 12% da receita total. "Quando se trata de alguma doença rara, a dificuldade é ainda maior já que são menos pessoas afetadas e envolvidas com a causa diretamente", diz Merula Steagall, presidente da associação e ganhadora do Prêmio Empreendedor Social 2013.

Uma das três organizações que tratam da ELA no Brasil, a Associação Pró-Cura da ELA, sentiu os reflexos da campanha do balde de gelo em seu orçamento. Em 2013, arrecadou R$ 10 mil, sendo que boa parte da quantia foi doação de familiares dos pacientes. Depois do desafio, até agosto, já havia recebido R$ 480 mil em doações.

"As doenças raras têm um número pequeno de pacientes e não geram interesse das farmacêuticas, que só pensam no capital e no número de pessoas que podem se tornar dependentes da droga que produzem", afirma Andreza Diaferia, diretora da associação.

Em contrapartida, organizações que tratam de doenças mais comuns e divulgadas, como o câncer, têm doações elevadas. O Graacc (Grupo de Apoio ao Adolescente e a Criança com Câncer) tem um orçamento anual de R$ 80 milhões, sendo R$ 60 milhões obtidos por meio de doações. "É comum o doador conhecer alguém que tenha câncer e, por isso, tem uma relação direta com a doença e com o nosso trabalho", conta Tammy Allersdorfer, gerente-geral de desenvolvimento institucional do Graacc.

CAPTANDO RECURSOS

Uma pesquisa internacional divulgada no ano passado aponta que o Brasil é o 91º país mais solidário do mundo – 23% das pessoas afirmaram ter doado dinheiro para organizações sociais.

Para aumentar o volume de recursos, as organizações buscam recursos em outros meios. A Abrale tem doações vindas de empresas, por meio de patrocínios a serviços e ações específicas e um projeto de investimento em responsabilidade social. "Em contrapartida, as empresas podem divulgar o selo em seus materiais de comunicação e divulgarem a iniciativa de investimento social", explica Merula.

A Associação Pró-Cura da ELA busca recursos principalmente doação de equipamentos, com empresas que atuem na área da saúde. E, em alguns momentos, os associados chegam a colocar dinheiro do bolso para pagar as despesas.

O Graacc investe em uma série de ferramentas para manter e buscar novos doadores. São usados o telemarketing, cartas convidativas para as pessoas conhecerem o hospital e um grupo de marketing que visita empresas em busca de doações.

"É um trabalho constante, temos que conquistar os doadores ao longo do tempo porque eles vão saindo", conta Tammy. O grupo também procura oferecer notícias e relatórios com prestação de contas, que ficam na internet e são encaminhados trimestralmente aos doadores.

MARKETING, O SEGREDO

Para João Matta, professor de plano estratégico de marketing da ESPM Rio, as grandes falhas das organizações do terceiro setor estão em não ter planejamento e estrutura de marketing. "Fazer campanha de marketing é investimento. Mas, para isso, é preciso estabelecer metas a serem alcançadas, quando não se tem isso, dá medo no investidor."

Matta explica que, inicialmente, as ONGs têm que traçar planos máximos e mínimos para o que querem com a campanha, o que farão com as doações, e pensar qual é o público alvo e qual abordagem. "Elas têm que entender que precisam agir como empresas e que precisam vender um produto", diz. O anúncio tem que ser contínuo e o trabalho de sensibilização, o contato com o doador e a prestação de contas também.

Renata Correa, pesquisadora em responsabilidade social coorporativa, aposta na estratégia "buzz marketing", ou seja, o "boca a boca", que dissemina a campanha e a causa de maneira viral pelas redes sociais.

"Dessa maneira, o público passa a propagar o conteúdo de forma espontânea e sem custos", conta Renata. Ela também sugere que a campanha seja elaborada pela geração Y, pois são jovens, com ideia ousadas e podem gerar mais impacto na rede."Uma dica é trabalhar um viral lúdico por meio de games, ou fazer uma campanha on-line por meio de construção coletiva", diz.

A campanha também precisa tocar o coração e criar um vínculo afetivo em quem assiste. Além disso, também é indispensável o contato com investidores, voluntários, imprensa e comunidade no entorno, além de ter um analista de mídias sociais dentro da organização.

"As empresas possuem orçamento para o investimento social privado e muitas vezes não o utilizam por falta de projetos claros e que tenham resultados", diz Renata.

Para ter sucesso como no caso da ELA, Matta conta que o fator sorte é determinante. "Ter um famoso apoiando a campanha é muito importante. Ele pode não doar, mas contribui com a imagem. As pessoas param não pela causa, mas para ver quem está falando", diz.


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