Folha de S. Paulo


Enem pede direitos humanos em redação sobre educação de surdos

Marcado por uma controvérsia sobre direitos humanos, o Enem deste ano teve novamente uma proposta de redação relacionada ao tema.

A prova pediu um texto dissertativo sobre "desafios para a formação educacional de surdos no Brasil", no qual os candidatos deveriam apresentar uma"proposta de intervenção que respeite os direitos humanos".

O tema está alinhado com o das edições anteriores do exame. Das últimas 19, 11 tratavam de algum assunto relacionado a direitos humanos.

Neste ano, porém, decisão judicial proibiu que redações fossem anuladas por desrespeito a esses direitos. A decisão atendeu pedido do grupo Escola Sem Partido sob a justificativa de defesa da liberdade de expressão.

Presidente do Inep, instituto que aplica o exame, Maria Inês Fini afirmou que o pedido da redação é coerente com a competência 5 do exame: "elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos".

O que foi questionado judicialmente não foi essa competência, mas o item que tratava de motivos de anulação da prova. A entrevista de Fini e do ministro Mendonça Filho não contou com tradutor de Libras (Língua Brasileira de Sinais).

Pedro Ladeira/Folhapress
BRASILIA, DF, BRASIL, 11-10-2017, 14h00: Sessão plenária do STF, sob a presidência da ministra Carmen Lucia. O plenário julga hoje se é necessário aval do Congresso para a aplicação de medidas judiciais restritivas contra parlamentares, como suspensão das atividades públicas e recolhimento domiciliar. A relatoria é do ministro Edson Fachin e a decisão afeta o caso do senador afastado Aecio Neves (PSDB-MG). (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress, PODER)
Cármen Lúcia, presidente do STF, que deu decisão proibindo zerar redação que fira direitos humanos

TEMA

A escolha do tema do ensino de surdos ocorreu na primeira edição do Enem em que candidatos com deficiência auditiva tiveram acesso a uma Videoprova, com tradução em Libras.

Nesta edição da prova, cerca de 1,3 mil surdos e 3,4 mil pessoas com deficiência auditiva se inscreveram. Segundo o Inep, mais de 1,6 mil candidatos escolheram usar o novo recurso –outras opções disponíveis são a leitura labial e o tradutor intérprete de Libras.

O instituto também intensificou, neste ano, as orientações para a prova direcionadas a surdos. No canal do Youtube do Inep, uma série com mais de 30 vídeos em Libras explica detalhes do exame.

A prova teve início às 13h30 deste domingo (5) e os estudantes terão 5 horas e 30 minutos para escrever a redação e resolver as 90 questões de linguagens, códigos e suas tecnologias e ciências humanas e suas tecnologias.

CUNHO SOCIAL

Para Sérgio Paganin, professor do Anglo de São Paulo, o tema dá uma vantagem especial a candidatos com boa capacidade de leitura. "Por ser um assunto que os alunos dominam pouco, espera-se que a coletânea de textos de apoio ajude o candidato a construir uma reflexão."

O material de apoio incluía a lei que trata da questão; um gráfico mostrando a queda no número de alunos surdos na educação básica; um texto sobre a história do ensino a pessoas com a deficiência no Brasil; e um anúncio sobre a discriminação desse público por empresas. Não havia menção a estratégias de ensino adotadas.

Especialista em educação inclusiva, Maria Teresa Mantoan, professora da Unicamp, viu com reservas a proposta da redação. Em sua opinião, é interessante chamar atenção para a inclusão, mas, por outro lado, o ensino de surdos envolve conhecimentos específicos não dominados por grande parte dos alunos brasileiros.

Entre eles, está a resistência de parte da comunidade de surdos ao ensino da língua portuguesa. Parte deles defende apenas o aprendizado da língua de sinais, como forma de manutenção da identidade, opinião diferente da professora. "Acho importante o aluno não ficar limitado a uma única identidade."

Com experiência na área, a educadora Mônica Amoroso pontua ainda que há uma grande diversidade entre os alunos com a deficiência, o que demanda diferentes abordagens.

"Alunos surdos filhos de pais ouvintes muitas vezes chegam à escola sem língua alguma, nem a de sinais nem o português. Eles devem aprender primeiro a língua de sinais. Já a situação de crianças que perdem a audição após aprender português é totalmente diversa", afirma. Ainda assim, ela aprovou a proposta, por exigir argumentação sobre a inclusão.

ALUNOS

O tema surpreendeu os candidatos. "A redação foi complicada porque eu acho que nunca tinha lido sobre o assunto", afirmou Dênis Jarbas, 21.

Também pega desprevenida, Glória Pereira, 17, disse que conseguiu desenvolver bem seu argumento de que não há esforço contundente do governo para incluir surdos. Ela conta que construiu o texto com base no que sabia sobre o assunto e nos textos de apoio.

Luiza Araújo, 18, que tenta uma vaga no curso de farmácia, preferiu se manter alheia à decisão judicial que permitiu que os estudantes desrespeitassem direitos humanos na redação sem o risco de terem seus textos zerados. "Acho melhor respeitar os direitos humanos de qualquer jeito", diz ela.

Para ela, que fez a prova pela segunda vez, o Enem deste ano foi mais difícil que o exame do ano passado.

Para a professora Maria Aparecida Custódio, do colégio Objetivo, já era hora do Enem cobrar esse tema em sua redação. Com o uso pela primeira vez neste ano do novo recurso de acessibilidade para pessoas com deficiência auditiva, a Videoprova Traduzida em Língua Brasileira de Sinais (Libras), ela acredita que o Inep pode finalmente cobrar dos alunos esse tema.

Segundo ela, a dificuldade em desenvolver a redação estará ligada aos textos de apoio dados na prova.

SEGURANÇA

Mesmo que a decisão da ministra do STF Cármen Lúcia garanta que nenhuma redação seja zerada por desrespeito aos direitos humanos, candidatos evitaram arriscar.

É o que disse o estudante Igor Bueno, 16, que tenta uma vaga para cursar direito. "Muita gente começou a criar e espalhar boatos sobre a redação, que iria mudar de novo. Mas para mim não muda nada, porque eu não pretendo escrever contra os direitos humanos."

O mesmo pensa Rafaela Fiengo, 17, que sonha em estudar biologia. "Não muda nada, até porque eu acredito em respeito aos direitos humanos", diz ela, que chegou às 11h ao local de prova, na Uninove da Barra Funda, zona oeste de SP, para não correr o risco de se atrasar "e virar meme na internet". "Se eu chegar atrasada eu nem chego perto do portão, dou meia volta", afirma, enquanto ri "por fora", em suas palavras, "mas por dentro chora, porque a prova é difícil, desesperadora".

JOGO DE FUTEBOL

A disputa entre Palmeiras e Corinthians no Itaquerão tirou a concentração de alguns estudantes que prestaram a prova no prédio de uma universidade na Barra Funda, na zona oeste. A partir das 17h, quando os times entraram em campo, começaram barulhos de fogos e buzinaços dos torcedores.

O endereço fica próximo ao Allianz Parque, o estádio do Palmeiras, e está inserido em uma região conhecida por ser reduto de torcedores do time. "Precisei tapar os ouvidos para conseguir ler os textos", disse o estudante Felipe Andrade, 18. "É muito texto e o barulho atrapalhou bastante", disse Manoela Oliveira, 18.


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