Folha de S. Paulo


Impasse de última hora em nota de redação provoca insegurança no Enem

Os 6,7 milhões de inscritos do Enem poderão fazer no domingo (5) o primeiro dia de provas em um clima de insegurança e dúvida. Afinal, terão ou não as redações anuladas se, em seus textos, houver algo considerado como um desrespeito aos direitos humanos? Nem o Ministério da Educação consegue responder com segurança.

Essa é uma regra prevista nos critérios de avaliação dos textos desde 2013. Entretanto, uma decisão liminar (temporária) do Tribunal Regional Federal da 1º Região, divulgada no dia 26, determinou que o MEC não pode cumprir o previsto no edital.

Para o desembargador federal Carlos Moreira Alves, relator da ação iniciada pela Associação Escola Sem Partido, o respeito aos direitos humanos seria um "conteúdo ideológico", e não um critério de correção da prova.

O ministério promete entrar com recurso para tentar reverter a medida -mas, como só foi notificado da decisão na noite de quarta-feira (1), véspera do feriado, só formalizará isso nesta sexta (3), a dois dias do exame.
Além de redação, os inscritos devem fazer neste domingo as provas de ciências humanas e de linguagens. No domingo seguinte, dia 12, será a vez de matemática e de ciências da natureza.

inscritos por ano - Pela primeira vez, provas serão aplicadas em dois domingos

EDITAL

Em nota, o MEC reafirmou que a orientação é que todos sigam o previsto no edital, "especialmente em relação ao respeito aos direitos humanos no texto da redação". "Cabe esclarecer que, independentemente da intimação da autarquia, trata-se de decisão de caráter precário passível de ser reformada", diz o governo federal.

"Não cabe ao MEC e ao Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, responsável pelo exame] fazer avaliação sobre eventual insegurança jurídica oriunda de decisão judicial."

Caso a questão jurídica se arraste, o plano é manter o sistema de correção da redação com os critérios já estabelecidos pelo ministério. Redações que por ventura ferirem os direitos humanos serão segregadas, o que permitirá anular ou não esses textos.

A abordagem de temas relacionados aos direitos como proposta de redação é recorrente no Enem. De 19 edições, 11 tratavam de tema relacionado a essas questões.

Em 2015, 9.942 textos foram anulados por desrespeito aos direitos humanos. O tema naquele ano era "violência contra a mulher". No ano anterior, foram 955.

Perfil dos inscritos, em %

O Enem exige que os candidatos desenvolvam, dentro de um texto dissertativo, uma proposta de intervenção ao tema. Essa proposta configura um dos cinco critérios de correção da redação.

Na cartilha sobre a redação, produzida pelo Inep, são descritos posicionamentos que podem zerar a redação, como pregar o linchamento público, mutilação e tortura.

No ano passado, quando o tema foi liberdade religiosa, tiveram os textos anulados participantes que escreveram coisas como: "para combater a intolerância religiosa, deveria acabar com a liberdade de expressão" ou "o governo deveria punir e banir essas outras 'crenças', que não sejam referentes a Bíblia".

Em 2015, ao propor soluções para a violência contra a mulher, tiveram textos anulados candidatos que escreveram, por exemplo: "[quem comete essa violência deve] ser massacrado na cadeia", "fazer sofrer da mesma forma a pessoa que comete esse crime" ou "as mulheres fazerem justiça com as próprias mãos".

CONHECIMENTO

editoria de arte/folhapress

Francisco Platão Savioli, docente da Escola de Comunicação e Artes da USP e especialista em redação, lembra que a principal função da redação é avaliar se, além do conhecimento que ele adquiriu, "o aluno sabe o que fazer com esse conhecimento". "A redação é a parte da prova mais interdisciplinar", diz.

Ele relembra o papel indutor do exame para o conteúdo ensinado às crianças e jovens. "A principal finalidade de o Enem pedir uma proposta de intervenção a um problema é lembrar as escolas de que é importante formar um cidadão, e que ele seja participante e protagonista."

A nota da redação vai de zero a mil. Para cursos concorridos, em que candidatos têm desempenho muito similar nas provas objetivas, costuma ser determinante para quem garante uma vaga na universidade. O Enem é a porta de entrada para praticamente todas as federais. A USP também adota a nota para selecionar parte dos alunos.

O professor Rafael Lancellote, que leciona filosofia e sociologia no Cursinho da Poli, diz que os alunos, já pressionados pelas demandas típicas do vestibular, ficaram inseguros com a decisão judicial.

"Tivemos que acalmá-los, assegurando que argumentos contrários aos direitos humanos serão, naturalmente, mais pobres e não vão resistir a nenhum tipo de avaliação", diz. "Tirar a punição para quem faz essa afronta representa uma afronta à democracia e à tolerância."

Em busca de uma vaga em um curso de história, Lucas Merusse, 19, diz ter ficado desconfortável com a decisão judicial que muda uma regra em cima da hora, após um ano inteiro de preparo. "Foi um choque, mas para mim sei que não muda nada. Eu não desrespeitaria os direitos humanos no texto", afirma ele, no segundo ano de preparo no Cursinho da Poli.

Colaborou BRASÍLIA


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