Folha de S. Paulo


'Em ciências, base curricular é trágica', avalia especialista de Stanford

Apu Gomes - 18.ago.2011/Folhapress
Alunos têm aula de português em sala de aula lotada, na zona sul de São Paulo
Alunos têm aula de português em sala de aula lotada, na zona sul de São Paulo

Um dos quatro eixos da base nacional curricular divulgada nesta quinta (6) pelo MEC "vai completamente contra o que o mundo está fazendo" porque deixou de lado um componente fundamental para experimentação: a tecnologia.

A análise é de Paulo Blikstein, um dos maiores especialistas em tecnologia aplicada à educação do mundo, professor na Universidade Stanford, nos EUA.

Entre seus estudos recentes, Blikstein e seus colegas descobriram que deixar alunos fazerem experiências antes de ensinar teorias aumenta em até 25% o aprendizado.

Sobre a base, ele diz que matemática inovou com a introdução de estatística e de tecnologia. "A palavra 'software' aparece 13 vezes em matemática. Em artes, uma vez. Em ciências, zero."

O especialista participou da leitura crítica da base durante sua elaboração, que levou cerca de dois anos. Acompanhe abaixo a entrevista.

Entenda a base curricular

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Folha - Por que é importante ter uma base nacional curricular?
Paulo Blikstein - Ter uma base de alta qualidade é fundamental para reduzir a desigualdade educacional brasileira. A BNCC [Base Nacional Comum Curricular] é um dos poucos instrumentos de política pública que podem transformar um sistema educacional de forma abrangente. De uma vez só, ela muda provas nacionais, incentivos e materiais didáticos.

Mas é uma aposta arriscada. Se a base for pouco exigente e pouco inovadora, condenamos a escola brasileira a ficar no século 19 por mais 20 anos. Se não houver recurso para implementação e formação de professores, corremos o risco de desorganizar um sistema que já é ruim, e aprofundar diferenças. Não há milagre, não se faz melhora educacional só escrevendo um documento, é preciso um investimento massivo, de bilhões de reais por cinco ou dez anos, com gente tecnicamente habilitada para fazer a coisa funcionar.

Mas é possível ter uma base comum em um país tão grande e diverso?
Educação precisa ser significativa para o aluno, como dizia Paulo Freire. Não se pode aprender ciências em Manaus e em São Paulo da mesma forma, mas há tópicos e ideias geradoras que são comuns em qualquer lugar. A BNCC precisa seguir a tendência internacional de bases que focam em poucos tópicos, vistos de forma mais profunda, em vez de uma lista de 150 conteúdos superficiais que o professor finge que ensina e o aluno finge que aprende. E esses tópicos geradores podem ser adaptados pelos Estados e municípios de acordo com a sua realidade.

Na Amazônia, talvez haja ênfase nos estudos da vegetação, em São Paulo, na poluição. Mas esse processo de adaptação precisa de um assessoramento muito bom, a capacidade técnica de criar currículos adaptados é rara na maioria dos municípios. Se o governo federal não ajudar, as desigualdades regionais serão exacerbadas.

A ideia da base é projetar a educação para o futuro. Estamos conseguindo fazer isso?
A BNCC precisa olhar para o futuro. É a nossa chance de mudar a cara do Brasil. Não pode ser um retrato do sistema educacional brasileiro de hoje. Precisa sinalizar para governos e escolas como as coisas devem ser em cinco ou dez anos, precisa estar antenada nas tendências internacionais. Gostei de algumas mudanças em matemática, mas acho que dá para inovar mais.

Estatística entrou no ensino de matemática, o que era uma demanda de especialistas. Por que isso é importante?
A matemática escolar tem três vertentes: a matemática clássica, a estatística/probabilidade e o pensamento computacional. Hoje não se pode entender o mundo sem saber o que são algoritmos, ou entender mudança climática sem saber estatística. A matemática clássica não explica como o Facebook constrói a sua timeline ou como um robô funciona. Além disso, a pesquisa acadêmica mostra que muitos problemas matemáticos são muito mais fáceis de entender se você usa estatística ou programação. A BNCC de matemática avançou, mas deve ter muito mais de pensamento computacional e algoritmos, e espero que isso ocorra nas revisões do CNE [Conselho Nacional de Educação]. Não queremos uma geração de jovens que só consomem tecnologia, sem entender o que são e como podem ser criadas.

Você trabalha com experimentação no ambiente de ensino. Qual sua análise sobre a base de ciências?
Em ciências, a BNCC é trágica. Matemática inovou com a introdução de estatística e tecnologia. A palavra "software" aparece 13 vezes em matemática. Em artes, uma vez. Em ciências, zero. A tecnologia inexiste na base de ciências –é um absurdo. Cientista não usa tecnologia? Entender como funcionam as tecnologias digitais não é fundamental no mundo moderno? Programação não é um letramento-chave do século 21? Vai completamente contra o que o mundo está fazendo. Como esperamos ter mais cientistas e engenheiros no futuro?

O mais trágico é que a criança da escola particular vai aprender programação, robótica, educação maker, criação de tecnologia, deixando o aluno da escola pública ainda mais para trás. São Paulo talvez possa complementar a base e oferecer programação, mas talvez o Amapá não tenha recursos para oferecer mais do que a BNCC padrão. A BNCC só promove equidade se a versão padrão dela for de alto nível. O CNE não pode permitir essa tragédia.

Além da questão da falta de tecnologia, a base de ciências não implementa progressões claras –peça chave nas bases modernas. Um tópico é apresentado sem que os alunos tenham os pré-requisitos para entendê-lo. Não há uniformidade nem rigor no uso dos verbos que descrevem as habilidades. O texto não sabe se é base ou currículo, às vezes lista só conceitos, às vezes recomenda uma estratégia de sala de aula. E o tratamento da questão do impacto ambiental é maniqueísta, carregado de juízos de valor: a ação humana e as tecnologias são sempre colocadas como más e destruidoras. Substâncias sintéticas são sempre ruins. Isso não é ciência. Não é mais assim que se ensina ciência ambiental no mundo. As crianças precisam entender a questão ambiental de forma sistêmica, não de forma ingênua. Acho também lamentável que não tenhamos nada sobre o papel das mulheres na ciência.

Os experimentos aparecem na base de maneira muito aleatória. Há tópicos em que se fala em "discutir", outros se fala em "fazer um experimento", outros "selecionar argumentos" ou "representar. Não está claro qual o critério para escolher um verbo ou o outro, ou para fazer um experimento. Além disso, quando se determina um experimento específico, o documento está fazendo um currículo e não uma base curricular [uma orientação para o currículo]. Nas bases internacionais, há um enunciado com o conceito e cerca de três opções de como isso pode ser abordado em termos práticos. Daí quem está fazendo o currículo, ou mesmo o professor, pode fazer uma escolha. A base não pode especificar o que vai ser feito com experimento e o que vai ser feito com aula expositiva, a não ser que explique, nos textos introdutórios, como fez essa decisão.

Poucas escolas brasileiras têm laboratórios. Como resolver isso?
Hoje há formas mais baratas de fazer experimentos, com sensores eletrônicos, software de simulação, kits de baixo custo, laboratórios remotos. É um problema solucionável. Mas o que a BNCC traz como experimentação está 20 anos atrasado, parou na década de 1990. A base de matemática avançou, a de ciências parou no tempo. Diversas organizações da sociedade civil apontaram essa defasagem. A BNCC, como está, determina que a criança da escola pública tem que aprender a ciência do século 19, a ciência do papel e lápis, enquanto a da escola particular aprende simulações, programação, engenharia, robótica, investigação, ensino por projetos. É uma anacronia base que aprofunda diferenças.

O que os currículos modernos de ciência propõem é que aluno aprenda a pensar como um cientista ou engenheiro: fazer perguntas, elaborar hipóteses, coletar evidências, propor e comparar soluções. Embora tradicionalmente se pense que um laboratório moderno e superequipado seja necessário, há várias maneiras de atingir estes objetivos de forma mais acessível, com materiais de baixo custo. E hoje os laboratórios maker fazem isso muito mais fácil.

Alguns países como a Austrália debateram a sua base por quase dez anos. Debatemos, aqui, o suficiente?
Sem dúvida não debatemos o suficiente, e sem dúvida poderia ter sido muito melhor. Mas agora acho que o debate deve ser outro –temos uma base feita, não podemos retroceder, mas precisamos de um mecanismo de revisão. O CNE deve determinar uma revisão obrigatória em quatro ou cinco anos. O MEC deveria estabelecer um grupo de trabalho permanente de cientistas e educadores notáveis olhando para a base, propondo melhoramentos de forma periódica.

Qual é o maior desafio a partir de agora?
Na minha área, das ciências, o desafio é convencer a equipe de redatores que ela precisa olhar as bases mais modernas do mundo. Que o movimento maker existe. Que programação é uma necessidade. Que podemos fazer milhares de experimentos usando os sensores de um telefone celular, ou materiais baratos. Nós não podemos permitir mais um desastre nas ciências do ensino médio [a base curricular do ensino médio deve ser apresentada pelo MEC ainda neste ano].

Em relação à base como um todo, o desafio é a implementação. No mundo todo, uma nova base exige um investimento de bilhões de dólares em treinamento de professores e redesenho de materiais didáticos. O Brasil precisa fazer esse investimento. Uma base sem boa implementação vai desorganizar a educação brasileira e produzir um desastre que vai durar uma geração.

Uma das principais críticas da segunda versão da base foi a ausência das chamadas competências sociais e emocionais que, agora, na terceira versão, aparecem de maneira implícita. Por que esse desenvolvimento é importante?
Uma boa parte do que se fala de competências socioemocionais é modismo, sem pesquisa acadêmica que comprove. É um desenvolvimento importante mas não é milagre. Precisamos ser cuidadosos. Para de fato gerar essas competências, você tem que fugir do modelo aula expositiva/prova, que são péssimos ambientes para o desenvolvimento dessas competências. Os textos introdutórios [da base] falam dessas competências mas não as implementam claramente como objetivos de aprendizagem. Daí fica só para inglês ver. A editora vai pegar a lista de conteúdos e transformar em livro. Vai ficar para quem implementar as competências socioemocionais no currículo? Se a base ou o currículo não especificarem, vai ficar de novo nas costas do professor, que talvez não tenha o tempo ou a formação necessária.


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