Folha de S. Paulo


Empresas criam pacto, cursos e banco de talentos para atrair alunos negros

Bruno Poletti - 15.nov.2015/Folhapress
José Vicente, reitor da faculdade Zumbi Dos Palmares durante o Encontro Mundial de Invenção Literária, em São Paulo
José Vicente, reitor da Zumbi Dos Palmares, no Encontro Mundial de Invenção Literária, em São Paulo

Após 15 anos de políticas públicas como as cotas, a presença de estudantes que se declaram pretos e pardos nas universidades brasileiras praticamente dobrou. O alto escalão do mundo corporativo, no entanto, permanece majoritariamente branco.

Diante desse fosso, empresas e instituições ligadas à educação iniciaram uma mobilização para tentar encurtar a distância entre a sala de aula e as seleções de emprego.

O conjunto de ações inclui a formalização de um pacto pelo qual as companhias se comprometem a promover igualdade de oportunidades na ocupação de vagas. Entre as signatárias estão Bradesco, Google, Magazine Luiza, Santander e outras oito.

Em outra frente, com apoio do Ministério da Educação, será criado um banco de talentos de universitários negros, estudantes ou formados, que poderão ter acesso a treinamentos para concursos públicos ou para ocupações no setor privado. Eles também serão encaminhados para vagas de estágio e trainee.

Será uma espécie de "LinkedIn" com esse corte, diz José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares e presidente da organização Afrobras, que articula a iniciativa. Os cursos serão ofertados pelo Ciee (Centro de Integração Empresa-Escola).

NEGROS NO ENSINO SUPERIOR

A iniciativa não parte do pressuposto de que esse público tem qualquer deficit de formação em relação aos colegas brancos, ressalta Vicente. Trata-se mais de um estímulo à contratação. "A gente sempre ouve: 'até contrato negros, mas não sei onde tem' ou 'não estão preparados'. Vamos apresentar milhares deles, todos qualificados e perguntar: qual o problema agora?", afirma.

A iniciativa já está em execução como um projeto-piloto com alunos da Zumbi dos Palmares. Até o fim do ano que vem, a ideia é abrir a plataforma a todos os outros universitários negros e acompanhar a trajetória profissional deles, diz Luiz Gustavo Coppola, superintendente de atendimento do Ciee.

O Ministério da Educação afirma que irá firmar parceria para apoiar a plataforma "com vistas à inserção no mundo do trabalho" de cotistas negros e indígenas, formados ou não.

ENTRAVES

Segundo o IBGE, a proporção de universitários que se declaram pretos e pardos no país passou de 21,9%, em 2001, para 42% em 2014, ano com dados mais recentes. A média não é homogênea: entre os aprovados na USP em 2016, ficou em 16%.

O maior acesso é creditado à ampliação do ensino básico e a ações como cotas em universidades e no Prouni.

Segundo pesquisa do Instituto Ethos, por outro lado, só se declaram pretos e pardos 4,7% dos quadros executivos nas maiores empresas.

Para Marcelo Paixão, especialista no tema e professor da Universidade do Texas em Austin, o setor privado precisa participar e reexaminar seus entraves na seleção. "Não basta formar as pessoas, é preciso que elas encontrem empregos ou recebam financiamento, inclusive público, para ter o próprio negócio. Isso acabou ficando em segundo plano", afirma.

"A universidade mudou, mas muitas pessoas, não", afirma Dinamara Prates, cotista e aluna da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que relata ter sofrido discriminação em uma seleção de emprego de um escritório de administração.

Dona do Magazine Luiza, Luiza Trajano diz que a desigualdade é grave e se traduz de duas formas no setor privado: de um lado, muitos negros não tentam concorrer às vagas por achar que não serão selecionados; de outro, faltam às empresas ações específicas para essa questão.

"Precisamos mudar a cabeça e entender que há algo muito profundo a ser enfrentado", afirma a empresária.

SELEÇÃO DE EMPREGO

"Na seleção para o estágio, me ligaram da empresa e elogiaram muito meu currículo. Quando cheguei para a entrevista, a mesma pessoa me perguntou: 'mas tu que é a Dinamara?' Nessa hora, eu já soube o que iria acontecer."

Para a autora do relato, a estudante Dinamara da Silva Prates, 24, o episódio mostra que, mesmo com a adoção de políticas como as cotas, ainda persistem entraves à igualdade entre negros e brancos no mercado de trabalho.

A entrevista de estágio, diz, não durou nem dois minutos, e ela não foi selecionada.

Aluna de ciências contábeis da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ela entrou pela política de ação afirmativa e diz ter sofrido discriminação também na sala de aula.

"No meu primeiro ano, um professor disse na aula que as cotas tinham rebaixado o nível da universidade", diz.

Edu Andrade/Folhapress
Porto Alegre, 04.Nov.2016: Retrato de Dinamara Prates, aluna de ciências contábeis da UFRGS, que enfrentou o racismo tanto dentro da universidade como em entrevista de emprego e hoje integra um coletivo do movimento negro. (Foto Edu Andrade/Folhapress) COTIDIANO ORG XMIT: AGEN1611041915484254
Dinamara Prates, aluna da federal do Rio Grande do Sul, acredita que perdeu estágio por ser negra

POSIÇÕES

Negro e cotista como Dinamara, o estudante de engenharia da UFABC (Universidade Federal do ABC) Jorge Costa, 31, também relata episódio de discriminação no ambiente profissional.

"Fui contratado num dia, no seguinte o gestor me conheceu e 'congelaram' a vaga. No outro dia, chamaram uma amiga para o lugar, pois [disseram que] 'eu' tinha desistido", afirma ele.

"As empresas falam que são inclusivas, mas a população negra ainda está nos mesmos lugares: na segurança e na limpeza –não desmerecendo nenhum trabalho, porque eu sou filho de uma dona de casa e um marceneiro", diz.

"As empresas ainda olham para a população negra para determinados cargos que não necessitam de trabalho intelectual", acrescenta.

Aluno de direito de uma faculdade particular, Willian Barros, 27, diz que, em seu caso, o preconceito não foi velado. Já foi chamado de "macaco" e ouviu piadas racistas quando trabalhava numa oficina de confecção de joias. Chegou a entrar com processo, mas o colega que testemunharia a seu favor desistiu.

Hoje, faz estágio em uma grande empresa e avalia que muitos jovens têm medo de tentar uma vaga por medo de sofrer discriminação. "Muitos colegas me perguntam como é. Eu percebo que eles têm medo de tentar, se auto intitulam incapazes. Ou nem tentam, ou já vão para a seleção na 'retranca'", diz.

EMPRESAS

Companhias que aderiram à Iniciativa Empresarial pela Igualdade dizem que já atuam para equiparar as oportunidades internas entre negros e brancos.

Dona do Magazine Luiza, Luiza Trajano afirma que decidiu elevar o número de vagas de trainee e irá direcioná-las para profissionais negros.

Diretora de RH do Bradesco, Glaucimar Peticov diz que o banco recebe desde 2005 estagiários da Faculdade Zumbi dos Palmares para uma programa de dois anos que inclui capacitação em diversas áreas. Segundo ela, cerca de 60% deles são efetivados.

O problema não está nas empresas, mas na qualidade da educação, que prejudica pessoas de baixa renda, avalia Peticov.

Diretora de RH da Microsoft, Daniela Sicoli diz que, no último ano, "o número de negros vice-presidentes corporativos da Microsoft mais do que duplicou no mundo". Para aumentar a participação de negros em vagas de liderança, afirma, a empresa tem iniciativas de treinamento e tutoria desde o ingresso dos profissionais na empresa.

O Google diz que tem comitês como o AfroGooglers, "que advoca sobre causa da comunidade negra dentro e fora da empresa".


Endereço da página:

Links no texto: