Folha de S. Paulo


Análise

Tônica cotidiana e ambiental domina novo currículo de química

Marlene Bergamo/Folhapress
Reciclagem é um dos tópicos abordados no texto da Base Nacional Comum Curricular de química
Reciclagem é um dos tópicos abordados no texto da Base Nacional Comum Curricular de química

A tônica da proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o ensino de química do ensino médio é a aplicação da disciplina no cotidiano. Nada novo, mas tem sentido, já que há reações químicas por todo lado.

Um exemplo é a reação de ferro metálico com oxigênio (presente na atmosfera), formando ferrugem, que tem coloração e propriedades físicas e químicas diferentes daquelas do ferro.

Pensando em aplicações, esse pode ser o momento para o professor explicar por que utensílios de inox e latas de alimento não enferrujam, trazendo à tona assuntos como ligas metálicas e galvanização, por exemplo.

A química nasceu do esforço humano de tentar entender a natureza. Ela estuda as transformações sofridas pela matéria (reações químicas) e o fatores que interferem nesses fenômenos.

Ajudar o aluno a entender o contexto histórico das descobertas, as tecnologias disponíveis em cada grande achado e a paixão e a motivação com que grandes cientistas do passado construíram o edifício de conhecimentos químicos é fundamental para que a maratona de lições químicas do ensino médio não se torne enfadonha.

A BNCC faz orientações nesse sentido, como na parte em que é dito que "O estudante poderá entender o impasse que permeou a química no século 19, no qual a existência do átomo foi negada por falta de evidências empíricas que dessem suporte ao modelo atômico de Dalton e, assim, compreender a química como uma ciência na qual, no nascimento das teorias, as certezas convivem com controvérsias."

Base Nacional Curricular

Apesar de sucinto, o conteúdo previsto consegue delinear o que houve de mais importante nessa seara.

Para adquirir esse pacote de conhecimento, o estudante deve aprender a linguagem simbólica da química e, claro, entender o que ela representa em termos de interação entre átomos e moléculas.

Seja doloroso ou instigante, aprender esse alfabeto químico e suas nuances é importante para entender a descoberta de elementos químicos superpesados –fronteira da ciência atual.

Também com esse vocabulário mais desenvolvido, os estudantes ganham chaves para abrir portinholas em outras disciplinas como biologia (para entender processos como a fotossíntese e a respiração) e geografia (formação e diferença entre tipos de solo).

AMBIENTE

Uma das peculiaridades da proposta para o ensino de química é o grande espaço dado a questões ambientais. É algo importante e há alguma sinergia do conteúdo de "educação ambiental" proposto com o de química propriamente dita, mas para uma disciplina com tantos tópicos curiosos e importantes, a distribuição acabou ficando desproporcional.

Das seis unidades curriculares propostas (distribuídas ao longo dos três anos), duas têm "ambiente" no título. A unidade cinco foi intitulada como "A química dos sistemas naturais: qualidade de vida e meio ambiente"; a unidade seis, "Obtenção de materiais e seus impactos ambientais".

Do jeito que está, o estudante vai mais ouvir falar de "impactos ambientais" do que qualquer outro tópico. Até na unidade 4 (que trata de produção, armazenamento e transporte de energia), entre os seis objetivos de aprendizagem, um tem como meta apenas avaliar o impacto ambiental gerado pelo uso de combustíveis fósseis.

O problema acaba sendo um certo utilitarismo da química, relegada ao papel de certificadora ambiental (atestando qualidade da água, solo e ar) em vez de ocupar o papel mais abrangente e nobre de resultante do esforço humano de compreensão da natureza e suas transformações.

Em contraste com a vastidão de conteúdo ambiental, o de química orgânica (de grandes moléculas à base de carbono) praticamente sumiu.

Ao mesmo tempo, como a base propõe que o aluno saiba identificar transformações químicas "que podem produzir energia para processos que ocorrem no organismo de seres vivos", faria sentido entender um pouco mais como as macromoléculas da vida, orgânicas, se organizam. Para isso seria importante saber identificar um ácido orgânico ou um álcool, por exemplo.

Faz bem um pouco de filtro: não há justificativa para fazer o aluno decorar uma série de reações descoladas.

O conteúdo de química, mesmo antes das mudanças, já é bastante simplificado. Reações como a de hidratação e a de esterificação são importantes na fabricação de medicamentos e de aromatizantes, por exemplo, mas raramente há conhecimento de base suficiente para que os alunos de fato "entendam" como elas acontecem.

Quando esse conteúdo é forçado goela abaixo, geralmente é esquecido logo após a prova –ou mesmo antes dela.

Alunos na educação básica - Por etapa, em milhões*

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Calendário

26.jun.2014 - Plano Nacional de Educação é sancionado; lei prevê que o governo crie proposta de base curricular em até dois anos

16.set.2015 - MEC apresenta a 1ª versão do documento e abre consulta pública; as áreas de história e gramática geraram polêmica

15.dez.2015 - Ministério inicia análise das contribuições recebidas na consulta pública

3.mai.2016 - MEC divulga 2ª versão da base e a envia ao Conselho Nacional de Educação e a representantes de Estados e municípios

jun. a ago.2016 - Texto está sendo debatido nos Estados e deve ser devolvido ao MEC até agosto

ago a nov.2016 - Um comitê gestor vai revisar a base (ensinos infantil e fundamental) e debater o ensino médio

nov.2016 - O objetivo é ter a versão final até essa data (para infantil e fundamental), mas não há previsão de quando ela começa a valer

1ºsem.2017 - MEC deve definir a base curricular do ensino médio, após aprovação de projeto de lei no Congresso que prevê um novo formato para a etapa


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