Folha de S. Paulo


Análise

Formação de professor desafia equilíbrio para ensinar religião

Bruno Santos/Folhapress
São Paulo, SP, BRASIL-05-05-2016: Estudantes pré vestibular do cursinho Anglo em sala de aula. (Foto: Bruno Santos/ Folhapress) *** ESPECIAIS *** EXCLUSIVO FOLHA***
Estudante realiza exercícios de geometria; currículo nacional pode mudar

Ao menos no papel, a proposta da nova versão da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) para o ensino religioso nas escolas públicas tem muitas virtudes.

A ideia central do projeto é evitar a armadilha de transformar essa disciplina em mera aula de catecismo disfarçada e usá-la para que os alunos aprendam a discutir os prós e contras de todas as diferentes tradições religiosas.

Se colocado em prática com êxito, o currículo realizará a proeza de implantar um modelo de ensino religioso que não fere a laicidade do Estado (ou seja, o princípio de que o Estado brasileiro não promove nem ataca nenhuma crença ou descrença religiosa específica). Não seria pouco.

Hoje, a disciplina está presente no ensino fundamental público do Brasil como uma parte ao mesmo tempo obrigatória e optativa do currículo (no ensino médio ela não está presente).

Alunos na educação básica - Por etapa, em milhões*

Para ser mais exato, a oferta do ensino religioso é, em tese, obrigatória –ou seja, é preciso que as escolas sejam capazes de oferecer o curso-, mas assistir às aulas é opcional, dependendo da escolha do aluno e de sua família.

Para evitar que o ensino religioso seja simplesmente cooptado por confissões específicas, o novo texto da BNCC propõe um enfoque reflexivo e comparativo.

Mencionando especificamente as tradições religiosas cristãs, islâmicas, judaicas, orientais, africanas e indígenas, o currículo prevê que os alunos discutam o impacto das diferentes crenças e dos vários rituais no cotidiano das pessoas, nas concepções éticas e na história da humanidade -nesse último ponto, a única menção a um evento específico envolve o impacto negativo da catequese católica sobre as populações indígenas brasileiras.

Esse detalhe poderia sugerir que o documento está propondo um "ensino antirreligioso", mas no conjunto, o texto é bastante equilibrado.

A BNCC defende que é preciso encarar o respeito à diversidade e liberdade religiosas sob o prisma dos direitos humanos e adota distanciamento respeitoso quando sugere que os alunos analisem os diversos textos sagrados verificando tanto seus elementos que promovem a compaixão quanto os que podem incentivar intolerância e violência.

Base Nacional Curricular

DE BOAS INTENÇÕES...

Para usar uma metáfora de origem religiosa, porém, não dá para negar que a população do Inferno está repleta de gente bem-intencionada. Para que o ideal de um ensino religioso crítico, pluralista e não confessional vire realidade, é preciso transpor barreiras gigantescas.

A primeira delas é semelhante à enfrentada, em maior ou menor grau, por todas as disciplinas da BNCC, mas talvez seja ainda mais aguda no caso do ensino religioso: tem a ver com a formação dos professores.

As diretrizes propostas pelo documento só poderão ser colocadas em prática decentemente por profissionais que tenham familiaridade com os mais diferentes aspectos do fenômeno religioso, capacidade de relacionar os elementos da religiosidade com questões éticas, políticas e históricas, equilíbrio e jogo de cintura para não pregar nenhum credo específico e, ao mesmo tempo, mostrar aos alunos tanto o lado positivo quanto o negativo das religiões.

Se alguém sabe onde encontrar esse tipo de professor em quantidade suficiente para abastecer as escolas públicas do Brasil, por favor avise o Ministério da Educação urgentemente –mas parece difícil que eles existam.

Bons cursos de ciências da religião ainda estão restritos a poucas universidades; gente com formação em história, sociologia ou filosofia, que poderia suprir essa lacuna, frequentemente não se aprofunda em temas religiosos (ou não os tolera); e teólogos normalmente têm uma formação voltada para uma denominação religiosa específica.

Esse último ponto tem relação com outra possível armadilha: é muito difícil imaginar que a maioria das pessoas com treinamento suficiente para lecionar ensino religioso seria capaz de evitar totalmente alguma forma de proselitismo.

Outro pecado relevante da proposta é ser genérica demais em relação ao conteúdo. Não faria mal definir, por exemplo, um destaque específico a determinadas tradições religiosas ou textos sagrados -para um aluno brasileiro, faz mais sentido estudar a tradição judaico-cristã e o candomblé, por exemplo, do que mitos polinésios.

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Calendário

26.jun.2014 - Plano Nacional de Educação é sancionado; lei prevê que o governo crie proposta de base curricular em até dois anos

16.set.2015 - MEC apresenta a 1ª versão do documento e abre consulta pública; as áreas de história e gramática geraram polêmica

15.dez.2015 - Ministério inicia análise das contribuições recebidas na consulta pública

3.mai.2016 - MEC divulga 2ª versão da base e a envia ao Conselho Nacional de Educação e a representantes de Estados e municípios

jun. a ago.2016 - Texto está sendo debatido nos Estados e deve ser devolvido ao MEC até agosto

ago a nov.2016 - Um comitê gestor vai revisar a base (ensinos infantil e fundamental) e debater o ensino médio

nov.2016 - O objetivo é ter a versão final até essa data (para infantil e fundamental), mas não há previsão de quando ela começa a valer

1ºsem.2017 - MEC deve definir a base curricular do ensino médio, após aprovação de projeto de lei no Congresso que prevê um novo formato para a etapa


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