Folha de S. Paulo


Tarefa de inclusão é mais difícil que a de expansão, diz reitor da UFBA

Gabrielle Guido/LabFoto Facom-UFBA
Joao Carlos Salles, reitor da UFBA. Credito: Gabrielle Guido/LabFoto Facom-UFBA ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
O filósofo e reitor da UFBA, João Carlos Salles

Entre 14 e 17 de julho, mais de 4.000 docentes, estudantes e funcionários da UFBA (Universidade Federal da Bahia), além de alguns convidados, se reuniram para apresentar ideias para o futuro da universidade, que completa 70 anos. O evento foi acompanhado pela Folha.

Administrada há dois anos pelo doutor em filosofia pela Unicamp João Carlos Salles, a UFBA é, hoje, uma das principais universidades do Nordeste –15ª melhor do país no RUF (Ranking Universitário Folha).

Com orçamento apertado e histórico de corte de energia e de greve -o 1º semestre deste ano está começando agora-, a UFBA tem se tornado conhecida pelo esforço de inclusão. Há dez anos tem cotas sociais que, hoje, compõem 50% das vagas. "Inclusão é mais difícil do que a tarefa da expansão", diz Salles.

Leia abaixo a íntegra da entrevista.

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Folha - Ainda é difícil ser uma universidade no Nordeste?

João Carlos Salles - De fato, a distribuição de recursos era muito desigual. Existia um movimento inercial. Vamos falar da minha área, filosofia. Por muitos anos, eu era o único docente com bolsa produtividade do CNPq [agência federal de fomento à ciência] em filosofia no Nordeste. Isso mudou há uns dez anos. Existia também um desequilíbrio nos doutores do país.

O fato de nós termos um portal de periódico da Capes [agência federal que avalia e que fomenta pós-graduação no Brasil] diminui a disparidade entre as bibliotecas do Nordeste e do Sudeste. Hoje, uma dissertação produzida no Nordeste tem qualidade equivalente à do Sudeste.

Hoje, as universidades do Nordeste conseguiram uma multiplicação significativa, uma expansão, mas os problemas de orçamento não estão bem equacionados porque isso exige tempo e maturação de certas políticas.

Por exemplo, a gente começou a incorporar na universidade uma série de alunos que não tinham antes convívio com os melhores instrumentos da cultura ou que estão ainda em vulnerabilidade social. O espaço da universidade tem de ser mais sofisticado agora.

Mais sofisticado como?

Pareceu-nos fundamental abrir as bibliotecas aos sábados e domingos. Começamos com a biblioteca central da UFBA. Os equipamentos da universidade têm de compensar a ausência de condições que as pessoas podem ter em suas casas.

Esses alunos aos quais o sr. se refere são os cotistas?

Estou falando da expansão real do número de alunos e também da introdução das cotas de alunos de escolas públicas que, hoje, estão em 50% dos alunos da UFBA. Esse novo perfil de aluno enriquece a universidade, a gente passa a ser pautado por novos temas, mas também aumenta a nossa responsabilidade. A tarefa da inclusão é mais difícil do que a tarefa da expansão, que nos obriga a superar discriminações internas. Nós criamos uma ouvidoria, com espírito de cidadania -que não é um Procon, que tem espírito de consumidor. A gente consegue identificar que o aluno que entra na universidade permanece segregado, continua enfrentando problemas de discriminação que são oriundos de uma sociedade como a nossa. Ele pode permanecer cotista. Isso não é desejável. O desejável é a integração. Isso tem sido parte da nossa política.

Há dinheiro suficiente para esse trabalho?

Do ponto de vista do orçamento, estamos enfrentando todas as dificuldades que são características do país, em licitações, em construções. Isso faz com que tenhamos hoje obras inacabadas ou com um padrão construtivo de décadas passadas. Como somos dependentes totalmente do orçamento do governo federal, então o conjunto de medidas que torna a universidade mais pública também obriga o governo a conceder mais orçamento. E ainda não foi equacionado um orçamento em função da expansão real do espaço. Se você constrói um prédio, você tem obrigação de limpeza, manutenção, energia -uma das dívidas regulares nossas.

Vocês já tiveram energia cortada na UFBA?

Sim, tivemos energia cortada no ano passado, mas conseguimos superar isso. Estávamos com uma dívida de R$ 3 milhões em energia no ano passado. Chegou a R$ 6 milhões. Para se ter uma ideia, o gasto mensal da energia da universidade gira em torno de R$ 1,5 milhão. Depois de uns três meses sem pagar, a energia é cortada. Isso acontece porque o custo da energia da universidade é o mesmo de outros consumidores comuns, como um supermercado ou empresa.

Um problema, hoje, na UFBA é a terceirização na vigilância, no transporte, na limpeza. A terceirização é extremamente perversa em várias facetas. É um valor enorme em orçamento, os nossos contratos em vigilância, por exemplo, são enormes.

O terceirizado entra em "custeio". O orçamento da universidade é de cerca de R$ 1,3 bilhão, dos quais praticamente R$ 1 bi é do pessoal do quadro permanente. O desejável é que o que sobra para custeio não fosse destinado ao pagamento de pessoal também, mas sim à manutenção e eventos, por exemplo.

O desafio agora é fechar a conta do custo, que aumentou, com o orçamento, que caiu?

A situação é controversa, não é muito claro como será o nosso orçamento neste ano. Por enquanto, temos um corte de 20% no custeio e de 60% de capital -compra de equipamentos, realização de obras e afins. Nós contamos que vamos reverter isso, o orçamento já está defasado se considerarmos a expansão recente.

Como está sendo a expansão da UFBA pela Bahia?

Nós temos um campus fora de Salvador, que é em Vitória da Conquista [a cerca de 500 km de Salvador]. Agora, estamos lutando para que esse campus se torne a Universidade Federal do Sudoeste. Já encaminhamos para o MEC, mas nesse momento de crise política, institucional e orçamentária, estamos sem resposta do governo. Queremos retomar essa questão na condição de sermos tutores dessa universidade, o que já fizemos com a UFSB [Universidade Federal do Sul da Bahia, criada em 2013] e UFOB [Universidade Federal do Oeste da Bahia, também de 2013]. Isso significa que nós ainda compartilhamos contratos, ainda gerimos algumas atividades.

Quais são as dificuldades dessa interiorização?

A dificuldade é basicamente recurso. Temos um projeto aprovado em Camaçari [a cerca de 40 km de Salvador], mas precisamos de investimento. Temos crença na importância da expansão, achamos que é necessária nessa geração e nas próximas, mas é preciso ter uma certa ousadia.

É difícil contratar professores para os campi do interior?

Essa realidade atinge mais as universidades do Norte do país. A Bahia é generosa, todo mundo quer vir para a Bahia [risos]. Mas, sim, há professores contratados para Barreiras [UFOB] que ficam pedindo transferência, que buscam novos concursos públicos. Em Salvador, não temos esse tipo de problema. Se tiver vaga, tem professor. A cidade é maravilhosa e isso nos favorece bastante.

As cotas sociais já completam mais de dez anos na UFBA. Há perspectiva de modificá-las?

Estamos estudando. Isso depende muito do curso. Em licenciaturas, por exemplo, as cotas tiveram pouco impacto, mas em medicina o impacto é bastante grande. O congresso de 70 anos da UFBA pode nos trazer um rico material sobre isso.

O que será feito depois do congresso?

Agora que começa o trabalho mais fino. Nós fizemos um chamamento para a comunidade vir debater todos os assuntos que fossem colocados: ensino a distância, internacionalização, ações afirmativas. Vários textos foram propostos, tivemos vários debates. Vamos criar, agora, uma equipe de relatoria para trabalhar no material gravado. A partir daí, vamos elaborar documentos para o desenvolvimento do plano institucional da universidade. É uma capacidade de escuta extraordinária. A UFBA sentia necessidade disso depois de ter amargado um período de grande restrição orçamentária depois de um processo de expansão, o que foi um baque. Isso está renovando as nossas energias.

Como o sr. imagina os próximos 70 anos da UFBA?

Estamos tentando não antecipar e restringir o que será o futuro. Muitas vezes, o gestor simula o futuro na condição de um semideus e eu renuncio completamente a isso. Acredito que a excelência acadêmica é importante e não pode estar restrita às elites. Ao mesmo tempo, temos uma ligação muito forte com as comunidades, com a cultura local, com as artes. Vejo os próximos 70 anos preservando esses aspectos.

Sobre qualidade, vocês têm metas por exemplo em rankings universitários?

A gente não trabalha em função dos rankings, mas não os desprezamos. Acho que poderia haver indicadores novos, como de simpatia [risos]. Os rankings devem ser observados. Nossos cursos de graduação estão sendo cuidadosamente acompanhados, a qualificação do nosso corpo docente é muito boa e temos problemas de infraestrutura que estão sendo sanados. Isso vai refletir nos rankings. A gente não vive para tentar responder aos rankings universitários, não vamos ficar como biruta de aeroporto, perdidos e sem personalidade, mas temos de ficar atentos. São fortes as instituições que são capazes de interferir nos critérios de julgamento.


A jornalista SABINE RIGHETTI viajou a Salvador a convite da UFBA


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