Folha de S. Paulo


Governos dão 'voucher' e compram vagas para cumprir lei de matrícula

Com escolas públicas lotadas, governos de diferentes regiões do país passaram a comprar vagas na rede particular ou dar dinheiro diretamente aos pais para a matrícula das crianças.

Iniciativas do tipo não são exclusividade do Brasil. Países como o Chile dão vouchers (vales) a famílias para que elas escolham onde os filhos vão estudar.

A premissa declarada –e controversa– é que a medida estimularia a competição entre escolas, reduzindo custos e melhorando o ensino.

Ela foi defendida pelo ministro Henrique Meirelles (Fazenda) menos um mês antes de ele assumir o cargo, como revelou em maio a coluna "Painel", da Folha.

Na prática, porém, a transferência de alunos ao setor privado tem sido adotada no Brasil por outros motivos: falta de escolas, ações judiciais e necessidade de cumprir, às pressas, emenda constitucional de 2009 que tornou obrigatória, a partir de 2016, a matrícula de crianças de 4 e 5 anos.

Em 2014 (ano com dados mais recentes), 90% nessa idade estavam na escola.

TRANSAÇÃO EDUCACIONAL - % de crianças que frequentam escolas, por faixa etária

MOTIVOS

O sistema de voucher adotado por alguns gestores no Brasil não leva esse nome, mas, como nos países onde existe, consiste no repasse de dinheiro às famílias para que busquem colégios privados.

Neste mês, a medida foi anunciada pelo governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg (PSB). Pais de filhos sem vaga em pré-escola pública terão R$ 456 mensais para pagar uma particular.

Em Salvador, a gestão ACM Neto (DEM) dá R$ 50 ao mês para os pais de crianças de até 5 anos inscritas no Bolsa Família que não conseguiram matrícula na rede pública.

Outros municípios compram vagas, ou seja pagam colégios privados para que recebam alunos que os públicos não conseguem atender.

A iniciativa é adotada por prefeituras como as de Porto Alegre e Piracicaba (SP) e por diversas cidades do Rio Grande do Sul acionadas pela Justiça.

Uma das explicações para a adoção das medidas é contábil, diz Alessio Lima, líder da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação. "Para não exceder o teto de gasto com pessoal, municípios usam o voucher", diz. Dessa forma, não é preciso gastar com professores, por exemplo. "Assim como a compra de vagas, essa medida deve ser algo emergencial."

O sistema de vouchers já foi adotado em localidades dos EUA, na Suécia, na Colômbia e, em larga escala, no Chile.

Medidas adotadas pelos governos para atender crianças de até 5 anos -

Os resultados variam de acordo com uma série de critérios, como a quantidade de pessoas com direito ao pagamento, a possibilidade de escolas selecionarem ou não os alunos e a fiscalização.

No Chile, especialistas apontam que a política elevou a desigualdade no sistema educacional. Um dos motivos é que as escolas em que os pais podiam completar o valor do voucher acabavam contratando os melhores professores.

Por outro lado, estudos apontam efeitos positivos de uma mudança no modelo, em 2008: colégios com alunos mais pobres passaram a receber mais verba.

No Distrito Federal, a formulação da política passou longe da consideração sobre essas evidências. "Tem 2.500 crianças fora da escola. Não tem escola. Vou deixar de agir em nome de um discurso?", diz o secretário Júlio Gregório.

O argumento não afasta críticas. A principal é que os alunos, de áreas pobres, receberão um investimento menor até que os das escolas públicas -na rede do DF, o gasto por estudante é de cerca de R$ 700, e a bolsa será de R$ 456.

"É como se tivesse uma rede privada da classe média alta e outra do salário mínimo", diz o professor da Faculdade de Educação da UnB (Universidade de Brasília) Luiz Araújo. O governo diz que o valor foi definido após pesquisa de mercado.

Para João Batista Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto e especialista em políticas educacionais, sistemas como os de voucher podem até funcionar, mas dependem de fiscalização e de uma regulação complexa, para garantir qualidade e dar igualdade de acesso aos estudantes.

Ele afirma não ver razão para falta de vagas na pré-escola pública, pois o número de crianças de 4 e 5 anos vem caindo, assim como a repetência nessa faixa. "Nesses casos, parece mais falta de planejamento", afirma.

Arquivo Pessoal
Marina Peglow, que acionou a Justiça por vaga em creche
Marina Peglow, que acionou a Justiça por vaga em creche

ANTES DO PARTO

Um caso emblemático de compra de vagas em colégios particulares é o de Caxias do Sul, a 137 km de Porto Alegre.

Obrigada por ações na Justiça, a prefeitura da cidade paga as mensalidades de 3.578 alunos de creche e pré-escola (0 a 5 anos).

O número é maior do que o de matrículas da rede pública nessa faixa etária (1.882 em 2014, ano com dados mais recentes do censo educacional).

Boa parte das ações é movida pela Defensoria Pública. Marina Peglow da Silveira, 29, foi uma das que buscou a instituição.

Há dois anos, ela conseguiu pela Justiça uma vaga em creche para sua filha. Quando engravidou de novo, não quis esperar: entrou com ação judicial ainda durante a gestação para garantir o lugar de seu filho. "Eu não iria conseguir trabalhar", diz

O pedido foi negado, mas, após o parto, ela voltou à Justiça e conseguiu obter a vaga.

À frente de muitos processos, o defensor Sérgio Nodari diz que a compra de vagas não é o ideal, principalmente porque os colégios particulares não passam pelo mesmo controle que os públicos.

Mas, uma vez que não há vagas disponíveis na rede pública, é melhor do que deixar a criança fora da escola, diz. "Infelizmente, estamos apagando um incêndio", afirma.

O secretário municipal de Educação, Agenor Basso, critica a medida e diz que ela está criando um "caos" no município.

Ele reclama ainda de pais que não são pobres procurarem advogados para que o Estado banque o ensino dos filhos.

"É preciso ter critérios de vulnerabilidade. Desta maneira, estamos desestruturando o orçamento e praticando injustiça social, pois quem não vai à Justiça fica no fim da fila."

PIRACICABA

Ao contrário de Caxias do Sul, a prefeitura de Piracicaba ampliou sua rede de ensino e tem reduzido o número de vagas compradas de colégios privados.

A prática era adotada por iniciativa da administração para o ensino infantil, levando em conta critérios socioeconômicos.

Em 2016, 235 crianças de 4 e 5 anos receberam a bolsa. Esse número cairá a zero no ano que vem.


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