Folha de S. Paulo


análise

Em literatura, base curricular propõe ordem cronológica inversa

A parte da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) que trata do ensino de literatura no Brasil reflete os problemas já apontados pelo colunista Vinicius Torres Freire : em vez de tentar definir um mínimo comum (uma base) para o país, delineia uma espécie de currículo ideal.

A segunda versão, ainda sob discussão, foi divulgada pelo governo federal em maio. O documento saltou das 302 páginas do texto inicial para cerca de 650.

De acordo com a organização da BNCC, as áreas de conhecimento do ensino fundamental (1ª à 9ª séries) e médio dividem-se em linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências sociais. As linguagens, por sua vez, compreendem arte (dança, música, teatro), educação física, língua portuguesa e língua estrangeira moderna.

Dentro de língua portuguesa, há os eixos "leitura", "escrita" e "oralidade", por sua vez subdivididos em campos: "da vida cotidiana", "literário", "político-cidadão" e "investigativo". Quem chegar a esse segundo campo encontrará, finalmente, aquilo que convencionamos chamar de ensino de literatura.

Dito isso, a sistematização do currículo parece razoável e não muito diferente do que aprendíamos na escola na já longínqua década de 1980, quando o ensino fundamental tinha uma série a menos (ia da 1ª à 8ª).

Nos primeiros anos dessa etapa, o documento procura levar em consideração "tanto a criança que, no primeiro ano, inventa o que lê, apoiando-se fortemente nas imagens, como a criança que já se sente encorajada a ler sozinha, prosseguindo nesse movimento em direção a uma maior autonomia".

À medida que a proposta da base comum avança pelos anos finais do ensino fundamental, os alunos vão sendo estimulados a sair do campo da literatura infantojuvenil e entrar no da adulta. O texto não deixa de levar em conta a linguagem da internet (chamada de "internetês" e contemplada no "campo da vida cotidiana") e inclui entre os possíveis materiais de leitura produções como HQs e mangás, muito populares entre os leitores dessa faixa etária –o que é positivo.

LEITURAS

A BNCC não nomeia autores, mas define critérios para orientar escolhas de leitura.

"Cabe ao/à professor/a fazer escolhas –entre autores e obras a serem lidas– que melhor se adequem aos projetos de ensino que desenvolve, aos/às estudantes com os quais trabalha, a seus repertórios e interesses de leitura, sem deixar de considerar o sentido principal do trabalho com a literatura na escola, que é a formação de leitores literários", afirma o documento, já na parte que trata do ensino médio.

"Por outro lado (...), é importante que essas escolhas prestigiem autores e obras locais e regionais. É importante também que os/as estudantes sejam apresentados/as a autores das literaturas africanas de língua portuguesa", prossegue o texto da base.

Base Nacional Curricular

É justamente nas propostas para o ensino médio que se verifica um possível problema. Se as unidades curriculares forem seguidas do modo como são apresentadas na BNCC –campo das práticas literárias 1, 2 e 3–, os estudantes começarão essa etapa lendo escritores brasileiros contemporâneos e seguirão daí para os mais antigos, até o século 16.

Em nenhum momento o documento curricular prevê explicitamente a leitura de autores anteriores ao período do Descobrimento.

Ora, além das dúvidas que a abordagem na ordem cronológica inversa suscita –quem, às vésperas de prestar vestibular, terá interesse e paciência para se debruçar sobre autores quinhentistas?–, a BNCC exclui autores como os do trovadorismo português e o dramaturgo Gil Vicente (1465-1536), na fronteira da Idade Média com o Renascimento. São peças relevantes no amplo quebra-cabeça da língua em que nos expressamos, mas ausentes dele.

Além disso, o documento dá a entender que havia uma "literatura brasileira" autônoma, dissociada da portuguesa, no século 16, o que é no mínimo muito discutível. O primeiro grande poeta nascido no Brasil, Gregório de Matos (1636-1696), só apareceria no século seguinte.

Já que o MEC (Ministério da Educação) decidiu adiar para novembro a redação final da BNCC, seria bom que esses pontos, entre tantos outros apontados, fossem amplamente debatidos.

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Calendário

26.jun.2014 Plano Nacional de Educação é sancionado; lei prevê que o governo crie uma proposta de base curricular em até dois anos

16.set.2015 MEC apresenta 1ª versão do documento e abre consulta pública; as áreas de história e gramática geraram polêmica

15.dez.2015 Ministério inicia análise das contribuições recebidas na consulta pública, que acaba em 15.mar.2016

3.mai.2016 MEC divulga 2ª versão da base e a envia ao Conselho Nacional de Educação e a representantes de Estados e municípios

Jun. e jul.2016 Texto está sendo debatido em seminários nos Estados e deve ser devolvido ao MEC até agosto; o objetivo é ter a versão final até novembro, mas não há previsão de quando começa a valer


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