Folha de S. Paulo


Análise

Erros saíram, mas desequilíbrio continua em nova base curricular

Karime Xavier/Folhapress
Sala de aula no colégio Anglo 21, em São Paulo
Sala de aula no colégio Anglo 21, em São Paulo

Se a ideia era valorizar a segunda versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), lançada em maio, a estratégia escolhida não poderia ter sido melhor.

A primeira versão do documento, divulgada em setembro de 2015, apresentava tantos problemas que a simples retirada de parte deles já dá a sensação de que mudamos da água para o vinho.

As metáforas cabíveis aqui são a do bode na sala e a do copo meio cheio, meio vazio. Como removemos o caprídeo do recinto, fica a ilusão de que o vasilhame contém mais líquido do que de fato existe.

É claro que houve melhoras importantes. Elas aparecem logo nas primeiras páginas. Enquanto o primeiro esboço era um documento sem autores —apócrifo, alguns diriam—, a segunda versão está repleta deles. Há vários índices, como o de coordenadores, de especialistas, de colaboradores, de assessores, de revisores, de pesquisadores, de leitores críticos.

Imagino até que exista quem se incomode com tantas idas e vindas, substanciadas em consultas públicas, pareceres críticos etc. —o "assembleísmo permanente" enfim—, mas não é o meu caso.

Ao contrário, esse é o tipo de processo que precisa mesmo envolver a sociedade, para que a BNCC, depois de aprovada, se torne algo vivo, para que "pegue". Se não, teria sido muito mais simples (e barato) apenas traduzir uma boa base curricular estrangeira, fazendo as adaptações necessárias. Depois seria só baixar um decreto obrigando a adoção da nova BNCC e dizer "missão cumprida".

GRAMÁTICA

Também é importante frisar que os equívocos mais grotescos que haviam passado na primeira versão foram parcialmente consertados.

Agora já há um pouco de gramática na parte de língua portuguesa e a Antiguidade e o feudalismo voltaram a fazer parte explícita do currículo. Os jovens não se dedicarão mais só às civilizações ameríndias e à história da África.

Penso até que ainda sobraram mais referências do que o necessário a esse "ensino alternativo", mas imagino que as necessidades do mundo real se encarregarão de reequilibrar as coisas.

Sem nenhum demérito aos incas e ao Império Kanem-Bornu, nossa sociedade tem sua principal matriz na civilização ocidental e ela precisa ocupar um espaço substancial do currículo.

Ainda pelo lado positivo, considerando só as áreas de linguagens e ciências humanas, parece-me que a segunda versão da BNCC conseguiu, mais no ensino fundamental do que no infantil e médio, cumprir os objetivos de ser estruturalmente coerente, razoavelmente clara e suficientemente detalhista, isto é, de dizer o que todos os alunos precisam saber a cada etapa do aprendizado, mas sem baixar o "centralismo democrático".

CORPORATIVISTA

Passando agora para o lado "meio vazio", creio que a BNCC ainda carece de um bom centro de gravidade.

Os americanos, por exemplo, por entender que língua e matemática têm um caráter muito mais básico e instrumental do que as outras disciplinas, limitaram seu "common core" (base comum) a essas duas matérias.

Por aqui, na contramão do que fizeram os norte-americanos, seguiu-se uma lógica mais corporativista. Todas as disciplinas precisam estar paritariamente representadas na base curricular, de preferência ocupando o mesmo número de páginas.

Com isso, a BNCC mergulha num mar de pseudoplatitudes expressas no mais puro pedagoguês. Lembra a Marina Silva comentando um documento da ONU (Organização das Nações Unidas), se a metáfora é apta.

A BNCC traz passagens enaltecendo, por exemplo, o caráter "republicano" da educação física e como ela ajuda na "reconstrução crítica da herança cultural acumulada pela humanidade". Está na página 99 do documento, para os que acham que estou inventando.

Já a dança, ao oferecer uma nova "epistemologia" do corpo em movimento, permite que o estudante desenvolva novas visões de si mesmo e do mundo (página 115). Menos, gente, menos.

A educação física e a dança têm obviamente o seu valor, que advém principalmente do fato de que a atividade física é importante em todas as idades. Não é necessário buscar justificativas muito transcendentais para a inclusão dessas disciplinas nem detalhar o que cada aluno precisa ser capaz de "fruir" em cada etapa de sua vida escolar.

Na verdade, ao igualar ginásticas, dança, música, teatro, artes visuais, esportes, brincadeiras e jogos aos mais fundamentais português e matemática, a BNCC acaba mesmo é desequilibrando o currículo.

Alunos na educação básica - Por etapa, em milhões*

Alunos na educação básica - Por rede, em milhões

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A Base Nacional Comum Curricular

O que é?

Um documento que traz o conteúdo mínimo a ser ensinado nas redes pública e privada do país

Serve para quais etapas?

Toda a educação básica (ensinos infantil, fundamental e médio)

Quem deve aplicá-la?

Todas as escolas das redes municipal, estadual, federal e particular

De quais áreas do conhecimento ela trata?

Matemática, ciências da natureza (ciências, física, química e biologia), linguagens (língua portuguesa, arte e educação física) e ciências humanas (história, geografia, sociologia e filosofia)

Como é hoje?

A escolas se baseiam em diretrizes consideradas genéricas e em livros didáticos, que são escolhidos pelo próprio colégio. O que cai nos vestibulares e no Enem também influencia

Como vai ficar?

Cerca de 60% do conteúdo abordado em sala de aula seguirá a base curricular do MEC; o restante será determinado pelas redes estadual e municipal e pelas escolas

Calendário

26.jun.2014

Plano Nacional de Educação é sancionado; lei prevê que o governo crie uma proposta de base curricular em até dois anos

16.set.2015

MEC apresenta 1ª versão do documento e abre consulta pública; as áreas de história e gramática geraram polêmica

15.dez.2015

Ministério inicia análise das contribuições recebidas na consulta pública, que acaba em 15.mar.2016

3.mai.2016

MEC divulga 2ª versão da base e a envia ao Conselho Nacional de Educação e a representantes de Estados e municípios

Jun. e jul.2016

Texto será debatido em seminários nos Estados e deve ser devolvido ao MEC até agosto; o objetivo é ter a versão final até novembro, mas não há previsão de quando começa a valer


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