Folha de S. Paulo


Análise

Nova base curricular ainda prevê fazer muito em pouco tempo

Karime Xavier/Folhapress
Sala de aula no colégio Anglo 21, em São Paulo
Sala de aula no colégio Anglo 21, em São Paulo

A Base Nacional Comum Curricular ainda é um rascunho de 628 páginas. Fez bem o Ministério da Educação de adiar de junho para novembro a redação final desse documento pouco objetivo no que interessa, os "objetivos de aprendizagem".

O texto não parece de todo mau, pelo menos a um leigo interessado. Mas não faz o essencial do que se propõe: a síntese do mínimo comum nacional do aprendizado.

Francamente, seria uma alegria que todas as crianças do primário aprendessem tudo aquilo, do modo razoável, humanizado e por vezes até criativo proposto nos tabelões detalhados que distribuem os vários "conteúdos" pela sequência escolar.

Ressalte-se o "tudo aquilo". Assuntos e sua sequência não diferem do que vi na escola, faz quase 40 anos, ou do curso de minha filha, ora caloura na faculdade. Mas a BNCC não deveria ser só referência do mínimo fundamental?

Parece mais um currículo ideal, extenso. De resto, essa base em tese ainda será acrescida de 40% de conteúdos extras, que dependem de variações regionais ou de projetos específicos da escola, não fica claro.

Enfim, não há quadros sintéticos dos pontos mínimos a serem aprendidos. A ambição continua desmedida, embora seja comum quem saia do ensino superior inseguro de calcular proporções ou porcentagens, de pensar equações de primeiro grau ou de explicar as estações do ano.

Os assuntos de ciência no colégio são astronomicamente extensos, literalmente, no caso de física. No ano final, se propõe a ensinar desde física de partículas a cosmologia. Como? Não se diz. Em um texto de 628 páginas, a descrição de temas de biologia, física e química leva não mais que sete páginas cada uma. São sumários impraticáveis.

FÍSICA

O caso da física é grave. O currículo lembra um índice de ementa de cursos superiores. Trata de toda a matéria que hoje jamais é dada na íntegra: mecânica, termologia, óptica, ondas, eletricidade, eletromagnetismo e ainda expande brutalmente a introdução à física moderna.

Tudo bem tratar de assuntos que animem a imaginação dos estudantes. Mas como ensinar evolução das estrelas e cálculos gravitacionais? Tudo isso pode se tornar apenas falação descritiva, se tanto conceitual.

Os jovens não terão os rudimentos de matemática para lidar com o mínimo desses assuntos. Aliás, em um texto cheio de petições de princípio vazias sobre integração de disciplinas e retórica de "formação integral", não se trata da relação de física com matemática, sem o que as aulas de física logo se transformam em massa amorfa de conceitos.

Por falar em matemática, é a disciplina de "ciências" mais bem cuidada na BNCC. O currículo do secundário foi enxuto. Saem, por exemplo, números complexos e matrizes. Raro haver tempo para motivações e aplicações no ensino colegial desses temas. Nesse nível, podem ser rapidamente aprendidos na universidade.

Mas o que fazer de alunos mais avançados ou especializados? Não parece haver organização ou recursos para definir, em nível nacional, classes especiais ou optativas, até porque o colegial brasileiro tem disciplinas demais (uma dúzia).

Ainda em matemática, há ênfase nova em probabilidade, estatística e matemática financeira. Bom. Mas quer se dar para jovens de 11 ou 15 anos noções avançadas demais de probabilidade ou amostragem, assuntos sutis e mal ensinados até em universidades.

O currículo de química parece extenso também. Parece que o curso tradicional foi acrescido de "química vida real": do que são feitos remédios, alimentos; impactos tecnológicos e ambientais. Parece também que se cortou o calculismo estéril. "Parece". O currículo é vago.

O texto da BNCC é muito ocupado por repetitivas explicações burocráticas da hierarquia de leis em que se baseia, de manifestos teoréticos com platitudes pedagógicas, psicológicas e sociológicas. Pelo bem ou pelo mal, as orientações ou divagações metodológicas pouco transparecem nos tabelões de "conteúdos" a serem ensinados.

Dá para ignorar a insistência em "sujeitos críticos". Ou coisas como a "juventude como condição histórico-cultural de uma categoria de sujeitos" a "ser considerada em suas múltiplas dimensões [...]articuladas com uma multiplicidade de atravessamentos sociais e culturais, produzindo múltiplas culturas juvenis ou muitas juventudes.

No entanto, ainda falta muito método na articulação das disciplinas e seu sequenciamento, princípios tantas vezes manifestos com ênfase na BNCC, mas que não aparecem na prática de definir os "objetivos de aprendizagem".

Alunos na educação básica - Por etapa, em milhões*

Alunos na educação básica - Por rede, em milhões

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A Base Nacional Comum Curricular

O que é?

Um documento que traz o conteúdo mínimo a ser ensinado nas redes pública e privada do país

Serve para quais etapas?

Toda a educação básica (ensinos infantil, fundamental e médio)

Quem deve aplicá-la?

Todas as escolas das redes municipal, estadual, federal e particular

De quais áreas do conhecimento ela trata?

Matemática, ciências da natureza (ciências, física, química e biologia), linguagens (língua portuguesa, arte e educação física) e ciências humanas (história, geografia, sociologia e filosofia)

Como é hoje?

A escolas se baseiam em diretrizes consideradas genéricas e em livros didáticos, que são escolhidos pelo próprio colégio. O que cai nos vestibulares e no Enem também influencia

Como vai ficar?

Cerca de 60% do conteúdo abordado em sala de aula seguirá a base curricular do MEC; o restante será determinado pelas redes estadual e municipal e pelas escolas

Calendário

26.jun.2014

Plano Nacional de Educação é sancionado; lei prevê que o governo crie uma proposta de base curricular em até dois anos

16.set.2015

MEC apresenta 1ª versão do documento e abre consulta pública; as áreas de história e gramática geraram polêmica

15.dez.2015

Ministério inicia análise das contribuições recebidas na consulta pública, que acaba em 15.mar.2016

3.mai.2016

MEC divulga 2ª versão da base e a envia ao Conselho Nacional de Educação e a representantes de Estados e municípios

Jun. e jul.2016

Texto será debatido em seminários nos Estados e deve ser devolvido ao MEC até agosto; o objetivo é ter a versão final até novembro, mas não há previsão de quando começa a valer


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