Folha de S. Paulo


De volta à escola

Marcelo Coelho: No xerox apagado, foi impossível ver as figuras

Colunistas retornam aos bancos escolares

Colunistas da Folha retornam aos bancos escolares por algumas horas e acompanham um dia de aula entre adolescentes de três colégios da cidade de São Paulo.

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Escolas em que não se aprende coisa nenhuma, com professores desmotivados e alunos ingovernáveis: é essa a imagem da rede pública de ensino.

Meu dia numa classe do sexto ano, numa escola municipal perto da Baixada do Glicério, zona central de São Paulo, confirmou, mas também desmentiu, esse lugar comum.

O professor de história apresenta o tema do dia: os deuses egípcios. Mostra aos alunos um xerox apagadíssimo, em papel A4, onde há seis ou oito imagens dos tais deuses, com um curto texto ao lado. É impossível ver qualquer coisa. "Se tivéssemos mais recursos...", diz ele.

A classe é pequena, menos de 20 alunos de 11 ou 12 anos, a maioria meninas. Elas trazem os cadernos, aliás, em perfeita ordem, com as canetinhas coloridas fazendo o trabalho que se conhece. Um garoto mais velho tem deficiência mental e hiperatividade; grita bastante, xinga as meninas com os piores palavrões, sobe em cima do armário. O jeito é pedir que faça desenhos; ele copia com capricho uma ilustração do livro de história.

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Devido às novelas bíblicas, as meninas têm curiosidade sobre a crença dos faraós. "Quem era Hórus?", pergunta uma delas. O professor não parece saber. Pede aos alunos que juntem as mesas e leiam o texto das poucas cópias xerox à disposição. Uma menina se levanta e escolhe um deus qualquer; lê em voz alta, mas não entende nada –a atenção dos demais se dispersa. Determinado deus tem "cabeça de milhafre"; ninguém, incluindo este articulista, tem ideia nítida do que seja.

"Os egípcios tinham guerras?", pergunta outro aluno. "Sim", responde o professor, porque todo "império" busca expansão territorial. É a deixa para falar das guerras promovidas pelos Estados Unidos. A exposição, que envereda sobre a utilidade de se estudar tudo aquilo, culmina na afirmação de que a história é a história da luta de classes.

Aos 60 anos, o professor sofre de problemas na próstata e de psoríase nervosa. Dá aulas das 7h às 23h e considera que o ensino da disciplina deveria focar-se nos problemas reais da comunidade –há filhos de moradores de rua, há refugiados haitianos e sírios, três pais de crianças daquela classe estão na cadeia.

Outro professor aparece e não se queixa do salário: recebe cerca de R$ 5.500 por mês, por 40 horas semanais.

Entra a professora de ciências, com quase 70 anos. É a primeira a fazer chamada, não aceita "eu!" ou "aqui!" como resposta. Só "presente". Manda que as mesas sejam enfileiradas direitinho, exige que as crianças fiquem com as costas retas.

Fala sobre o Aedes aegypti. Por preciosos minutos, registrou-se algo inédito naquele dia: silêncio na classe. Ela explica o nome científico do inseto. Você sabe? "Aegypti" quer dizer "do Egito", claro. "Aedes" significa "insuportável". Retenho a palavra, enquanto o menino hiperativo atira bolinhas de papel em todo mundo.


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