Folha de S. Paulo


Escola foca nas habilidades avaliadas em testes acadêmicos, diz autor

Depois de ficar 12 semanas na lista dos mais vendidos nos Estados Unidos, o best-seller "Uma questão de caráter" (ed. Intrínseca), do jornalista Paul Tough, chega agora ao Brasil.

O livro diz que as escolas, ao focarem todo o aprendizado apenas nas habilidades cognitivas –como matemática ou gramática, que podem ser testadas academicamente– estão ignorando o desenvolvimento de outras capacidades importantes das crianças.

O autor chama de caráter as capacidades como autocontrole, perseverança e otimismo, e que ajudariam as crianças tanto na escola quanto fora dela, como na universidade ou no mercado de trabalho.

Esse aprendizado seria ainda mais importante quando voltado a crianças que cresceram em contextos conturbados, em meio à pobreza, discriminação e violência, e que por isso possuem muito mais dificuldade de se sair bem na escola. Características que devem ser desenvolvidas pelos pais e comunidade, mas não só.

Tough largou seu emprego como repórter no "New York Times" para se lançar à empreitada. É o seu segundo livro na área. O primeiro, "O que for preciso: A busca de Geoffrey Canada para transformar o Harlem e os Estados Unidos (em livre tradução), fala sobre um projeto educacional no Harlem, um dos bairros mais pobres de Nova York.

No Brasil, Tough participa essa semana do fórum internacional "Educar para as competências do século 21", promovido pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) em parceria com o Instituto Ayrton Senna, MEC e Inep.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

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Na opinião do senhor, qual o papel da escola na vida de uma pessoa? Ela deve atuar com qual finalidade?

O propósito das escolas é dar às pessoas as capacidades para elas terem sucesso na vida. E hoje, nos Estados Unidos, a educação está focada numa gama muito restrita de capacidades. Eles estão focados em dar capacidades cognitivas, que são, sem dúvida, muito importantes. As crianças precisam aprender a ler, escrever e fazer contas. Mas o que os educadores e cientistas estão dizendo é que essas capacidades não são suficientes. As escolas têm que ajudar as crianças a desenvolver capacidades do caráter, ou não cognitivas. Como autocontrole, ou perseverar em situações de dificuldade, que certamente importam para ir bem na escola, mas principalmente depois da escola, quando nos tornamos adultos. Estamos ignorando importantes capacidades na escola.

Historicamente, isso foi algo passado no núcleo familiar. O senhor acha que isso já não está mais acontecendo e por isso se tornou algo que devemos prestar atenção na escola?

As famílias desempenham um papel importante. Mas não são únicos. O que aprendemos é que ambientes problemáticos, caóticos e violentos podem fazer com que seja muito difícil para as crianças se desenvolverem. Não é certo falar que essa é uma responsabilidade da família, e que se ela não consegue estimular isso, não há nada o que possamos fazer. Existem muitas coisas que podemos fazer para desenvolver essas capacidades nas crianças.

Por que o senhor decidiu escrever seus livros sobre educação e o que descobriu sobre os outros e sobre si próprio nesse processo?

Comecei a escrever sobre educação há dez anos, um pouco por acidente. Meu primeiro livro foi sobre Geoffrey Canada, que desenvolvia um programa no Harlem em New York, o "Harlem Children's Zone". Encontrei ele em 2003 para fazer uma matéria, mas fiquei muito fascinado pelo programa que ele desenvolvia. E passei cinco anos escrevendo um livro sobre isso. O trabalho me levou à questão: o que as escolas podem fazer? Por que algumas escolas não estão tendo sucesso em educar as crianças.

Existe uma grande e persistente barreira educacional entre pessoas que cresceram na pobreza e as que cresceram com boas condições. Isso não é só injusto como economicamente prejudicial, porque estamos desperdiçando muito capital humano, porque não estamos dando a essas pessoas o suporte adequado. E hoje enfrentamos um crescimento perigoso da desigualdade nos Estados Unidos. E a melhor maneira de mudar isso é melhorar a educação.

Como o livro afetou sua percepção sobre si mesmo?

O livro me fez repensar a minha própria educação. Eu larguei a faculdade, porque eu queria mais desafios e achava que para alguém que fazia jornalismo era melhor aprender sobre o mundo, fora do sistema acadêmico. Mas eu tenho alguns arrependimentos, o que me fez pensar no que estava acontecendo comigo psicologicamente.

E a outra questão que afetou minha vida foi porque eu tenho um filho de quatro anos. Eu penso muito sobre a educação dele e o que vai acontecer na educação, o que eu posso fazer, e o que sua mãe pode fazer para desenvolver essas características.

Porque o senhor abandonou a faculdade?

Eu já tinha estado em um ensino médio que cobrava muito academicamente e eu precisava de outro tipo de desafio. Eu sentia que precisava fazer alguma coisa bem diferente, precisava aprender sobre mim mesmo de uma maneira mais profunda. E acho que existe uma tradição de jovens que vão em viagens longas para se conhecer. E a segunda vez, eu abandonei porque já estava trabalhando numa redação, onde aprendia muito mais do que na faculdade.

O senhor escreveu sobre escolas que, mesmo recebendo muitos investimentos, não tiveram seus problemas resolvidos. O que isso significa? O que podemos fazer em escolas que, ao contrário, não possuem recursos?

Gastar mais dinheiro na educação ajuda. Mas tem muitas escolas onde estamos gastando muito dinheiro, e não estamos tendo bons resultados. Por décadas tentamos fazer algo na Fenger High School em Chicago sem ter bons resultados. Apenas recursos financeiros não são suficientes quando os jovens estão crescendo em ambientes de violência e segregação. É necessário que haja uma compreensão mais ampla, com assistência à família e à comunidade. Não existem programas para compreender esses jovens de um modo mais amplo e conectado. Isso faria uma grande diferença, e não significa mais dinheiro, porque já estamos gastando muito dinheiro, mais com as coisas erradas, como centros de detenção, patrulha policial e benefícios sociais em forma de pagamentos assistencialistas. E não coisas que vão deixar as pessoas com mais capacidades.

Divulgação
Paul Tough, autor do livro
Paul Tough, autor do livro "Uma questão de caráter: Por que a curiosidade e a determinação podem ser mais importantes que a inteligência para uma educação de sucesso"

Quais são essas características que deveriam ser desenvolvidas na escola e como podemos desenvolvê-las?

Eu acho que não há nenhuma característica mágica ou mais importante que qualquer outra. Tem algumas que são importantes, como perseverança, autocontrole, otimismo (a percepção de que você pode fazer melhor) e autoconsciência (a capacidade de fazer seu trabalho bem feito mesmo que não exista nenhuma recompensa material para isso). O ambiente que essas crianças crescem tem muito a ver com o modo que elas vão desenvolver essas habilidades.

Eu não posso dizer que sei exatamente o que fazer para desenvolver essas capacidades, mas sabemos que temos alguns professores, pais e ambientes que conseguem ajudar esse desenvolvimento. Isso ocorre sobretudo na primeira infância. Mas tem experimentos, como mostro no livro, que apontam que podemos contribuir para esse aprendizado na escola, ao invés de focar apenas nas habilidades que podem ser medidas em testes acadêmicos. Eu fico encorajado pelo fato de existirem muitos programas, estudos e intervenções, não só nos Estados Unidos, mas em todo mundo, tentando responder a essas questões.

O senhor fala sobre pessoas das melhores universidades do país que se formam e vão trabalhar em Wall Street, mas não necessariamente têm sucesso. O que é sucesso para o senhor?

Não é uma resposta simples. Existem jovens que vão para profissões em que ganham muito dinheiro, mas não necessariamente se sentem realizados. Acho que existe nos Estados Unidos e em todo o mundo uma visão muito estrita do que é sucesso. As pessoas nem sempre buscam profissões que as desafiam ou nas quais se sintam preenchidas de um modo mais profundo; muitas vezes vão pelos caminhos mais fáceis, na onda de seus amigos, mesmo que isso possa ser mais estressante. Uma boa educação, um bom salário e uma família estável são coisas que importam para que as pessoas sejam mais felizes. Um sistema que mede sucesso pelo dinheiro está errado. Precisamos definir sucesso pela maneira como as pessoas são felizes e produtivas.

Como você acha que estamos hoje em termos de combate a pobreza no mundo? Estamos mais perto ou mais longe de alcançar a erradicação?

Muita gente saiu da extrema pobreza nos últimos 15 anos e isso é uma notícia muito boa. Mas em alguns lugares como os Estados Unidos, a situação é muito menos esperançosa que em outros países, porque a desigualdade está crescendo. As crianças estão crescendo em situação materialmente melhor que no ano passado. As pessoas têm mais ar-condicionado e TVs. Mas a situação das crianças que estão crescendo na pobreza está mais difícil. Há muito mais famílias pobres com os dois pais desempregados, pais separados, ou crianças sem conhecer seus dois pais, crescendo em um modo muito instável. De muitas maneiras, eu acho que havia mais oportunidades para crianças que cresceram na pobreza há quinze anos. Elas podiam vislumbrar maneiras de sair da pobreza. E hoje, há muitas crianças crescendo na pobreza que não conseguem visualizar uma saída, uma oportunidade para sair dessa situação.

O que fazer quando, mesmo com altos níveis de educação, não há empregos para todos?

No passado, durante a recessão de 2008, não havia emprego nem para as pessoas graduadas [nos Estados Unidos]. Mesmo pessoas muito educadas iriam ter dificuldade de encontrar um emprego. Mas quando você olha as taxas de desempregos, elas são muito maiores para quem não tem um diploma universitário. Mesmo em tempos difíceis, é melhor ter um diploma. Isso pode não ser verdade em outros países como Espanha. Para jovens isso é muito complicado, e eu não tenho a solução. De todo jeito, a solução não é reduzir a educação.

A sociedade está passando por grandes transformações. Qual o papel da educação nesse processo?

É a mesma em qualquer período: ensinar as pessoas o que elas necessitam para obterem sucesso. Em um mercado de trabalho que muda muito rápido, precisamos definir essas capacidades de outro modo. É importante dar às pessoas flexibilidade para lidar com essas mudanças. Temos que ter uma abordagem mais amplas dessas habilidades.


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