Folha de S. Paulo


Capitalismo brasileiro nasce em Ribeirão (SP) no auge do café

O moderno capitalismo brasileiro pós-escravidão nasceu em Ribeirão Preto (313 km de São Paulo), com as riquezas do café, no início do século 20.

A análise é do jornalista e historiador autodidata Júlio José Chiavenato, autor de mais de 40 livros, a maioria deles sobre a história do país.

Esquerdista convicto, Chiavenato discorda do termo 'coronéis do café' atribuído aos fazendeiros que fizeram fortuna na região.

Para o escritor, aqueles cafeicultores eram 'homens de grande discernimento econômico' que, apesar da 'parca cultura', vieram para Ribeirão Preto e implantaram uma economia de mercado ainda inédita no país.

Silva Junior/Folhapress
O jornalista Júlio José Chiavenato no escritório de sua casa, na Vila Tibério, em Ribeirão Preto; escritor é autor de mais de 40 livros
O jornalista Júlio José Chiavenato no escritório de sua casa, na Vila Tibério, em Ribeirão Preto; escritor é autor de mais de 40 livros

Nesta entrevista, Chiavenato, que também é colunista do jornal "A Cidade", afirma ainda que a grande ruptura política da história de Ribeirão Preto foi a eleição de Costábile Romano (1905-1966) para a prefeitura em 1955.

Para ele, que conviveu com Costábile em "O Diário" --jornal fundado pelo ex-prefeito em 1956--, o político se beneficiou pelos anos de otimismo do Brasil de JK, o presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976) que governou o país entre 1956 e 61.

Leia a seguir a íntegra da entrevista.

*

Folha - Júlio, vamos começar?
Júlio José Chiavenato - Estou achando estranho. Me entrevistarem por quê?

Porque você é o cara que mais conhece a história política recente de Ribeirão.
Tem muita gente que conhece melhor do que eu por dentro. Só que não fala.

Mas você é também jornalista. A ideia é fazer uma análise da história política recente. Por "recente", estou chamando o período acompanhado por você como jornalista [desde 1965] ou um pouco antes. Porque você conhece mais até sobre o assunto, como historiador autodidata...
Eu sou jornalista.

Vamos começar por essa parte mais objetiva. Quantos livros você tem?
Quarenta e quatro publicados.

E publicou o primeiro quando?
Em 1979 ["Genocídio Americano"].
A minha vaidade, entre aspas, é o seguinte: eu não só publiquei 44 livros. Meus livros são republicados até hoje. Então, um exemplo que eu vou te dar é "O Negro no Brasil", que há 30 anos vem sendo publicado e republicado e republicado, até que se tornou um clássico da história do Brasil.

Então, publicar 50 livros, cem livros, tudo bem. O problema é republicar. Dos meus 44 livros, pelo menos 20 são republicados até hoje.

Quais outros como este que você citou?
"Massacre da Natureza", "Genocídio Americano", "As Meninas de Belo Monte", "A Inconfidência Mineira", "O Golpe de 64", um infantojuvenil, o "Doce Manuela"...

Quantos livros você lançou e que vêm sendo republicados? Você citou uns dez, mais ou menos?
Pelo menos uns dez. Fora os que eu esqueço.

E sobre Ribeirão?
Só o "Coronéis Carcamanos".

Esse teve reedição?
Teve, você ainda encontra esse livro.

Com qual editora está?
Ele já passou por duas editoras, agora está na Funpec. Teve acho que seis edições pela Global, depois ficou um tempo sem editar, aí foi para a Funpec.

Qual a data de seu nascimento?
Três de janeiro de 1939, em Pitangueiras.

Você começou no jornalismo em 1965?
É, por aí, em 1965, em "O Diário". Aí fiz muito free-lancer em muitos jornais do Sul, no "Coojornal", principalmente. Matérias que fiz no "Coojornal", por exemplo, como uma sobre a Bolívia, acabaram se tornando livro ["Bolívia com a Pólvora na Boca"]. Outra sobre o [Alfredo] Ströessner [ditador paraguaio (1912-2006)], também resultou num livro ["Ströessner: Retrato de uma Ditadura"]. Foi a melhor experiência que eu tive em jornalismo.

Inclusive o "Genocídio", sobre a Guerra do Paraguai [1864-1870]?
"Genocídio", mais ou menos. Foi através do "Coojornal" que eu fui para o Paraguai. O "Coojornal" era uma cooperativa de jornalistas. Não tinha patrão, não tinha nada. Também ninguém ganhava nada. Mas, no tempo da ditadura, era o único que a gente tinha. A válvula de escape.

Matérias que saíram naquela época no "Coojornal" não saíam nos outros jornais, nem [em outros] da imprensa alternativa.

Não que as matérias fossem mais agressivas no "Coojornal", mas eram mais jornalísticas. O "Movimento" e "Opinião" faziam matérias mais ideológicas, dirigidas contra a ditadura. E as matérias do "Coojornal" era o jornalismo-jornalismo. Não se preocupavam em fazer ideologia. Lutavam, eu acho, com mais eficiência por causa disso contra a ditadura.

Gostaria que você fizesse uma análise política... Ribeirão já foi a capital do café; tem gente que fala que já foi a capital da cultura, em função do café; uns dizem que é capital do agronegócio; o "Estadão", outro dia, chamou a cidade de capital da cerveja. Então Ribeirão parece ser uma cidade cheia de títulos. Como vê isso?
O Brasil é muito estranho, aqui tudo precisa de títulos, né? Então, se criam ícones para tudo. Por exemplo: capital do café. Era mais ou menos capital do café, porque o dinheiro do café, o grosso dele, não ficava em Ribeirão. Eram os ingleses, meia dúzia de firmas inglesas que controlavam o café.

E os financiamentos que esses ingleses faziam eram financiamentos muito acima da capacidade de pagamento dos cafeicultores que, depois, tinham endividado o Estado brasileiro para pagar os ingleses. Como eles tinham o poder político, também, então aquilo foi uma ciranda. Foi rolando até que estourou.

Mas o que acho importante e repito sempre, mas pouca gente percebe o que estou falando, é que, em Ribeirão Preto, começou o moderno capitalismo brasileiro [do século 20]. Esse é o grande lance que aconteceu em Ribeirão Preto.

Porque, até então, era o capitalismo dominado pelo coronelismo, cuja base era São Paulo e o sul fluminense. O Estado do Rio também [foi] dominado pelo café. Com a Guerra do Paraguai e o deslocamento do eixo econômico, se abriram novas fronteiras agrícolas. E a maior dessas fronteiras agrícolas foi essa região aqui de Ribeirão Preto.

Vieram para cá os Prado, como o Martinico Prado [1843-1906], que investiram pesado nas terras aqui.

Reprodução
O fazendeiro Martinico Prado, que fez fortuna em Ribeirão
O fazendeiro Martinico Prado, que fez fortuna em Ribeirão

Para ocupar essas terras, já não servia aquele modelo escravagista, que era característico do último momento do capitalismo brasileiro antes da República... Que durou ainda um tempo, um bom tempo.

Aqui [Ribeirão] se criou uma economia de mercado e, para cá, vieram aventureiros como aqueles que foram para o oeste americano.

Os coronéis do café, que, na verdade, não eram coronéis, eram homens de grande discernimento econômico, de grande coragem e de uma cultura muito parca, não tinham nenhuma tradição. Eles vieram para cá e criaram uma economia de mercado com o trabalho assalariado.

Então, a indústria do café em Ribeirão Preto nasceu do trabalhador livre. Trabalho livre entre aspas, trabalho assalariado. Foi a primeira vez que isso aconteceu no Brasil.

Então, esse é o grande lance de Ribeirão Preto: inaugurar um capitalismo de mercado. O capitalismo moderno nasceu aqui. Aí veio aquela acumulação de capitais e que se formou a cidade.

No Vale do Paraíba isso não aconteceu?
Não aconteceu. A explicação da decadência do café no Vale do Paraíba é uma explicação chocha e idiota, dizendo que as terras do Vale do Paraíba ficaram cansadas. Que dizer, é uma piada. Aquela região perdeu força porque o modelo de capitalismo não era mais interessante, não tinha mais harmonia com o capital exportador internacional.

Os ingleses, que eram grandes compradores e exportadores de café, viram aquela coisa arcaica, aquele capitalismo arcaico baseada no escravismo. Tem vários relatos de viajantes ingleses e alemães falando da maravilhosa coisa como funcionava aqui [Brasil] harmonicamente, mas à base do trabalho escravo.

Só que o trabalho escravo não era um trabalho produtivo. E, quando o mundo mudou, esse trabalho se tornou mais improdutivo ainda.

Para exploração de uma nova estrutura econômica foi preciso criar um novo tipo de mercado de trabalho e de formas de produção. [Foi isso] O que aconteceu aqui [Ribeirão].

Como não tinha trabalhador livre, trouxeram os trabalhadores da Europa. Então, foi uma empresa gigantesca. O próprio Martinico Prado abriu, na Europa, um escritório, para trazer para cá os imigrantes. E já pegava os imigrantes naqueles contratos malucos e o imigrante já vinha para cá endividado. Faziam o contrato de uma maneira, pensava que era outro, chegava aqui e acabava sendo um colono.

Então, o imigrante que chegava aqui, a maioria deles era analfabeto. Mas eram analfabetos italianos, analfabetos do Vêneto. Então eles tinham uma cultura tradicional superior à cultura desses coronéis que investiram aqui como os pioneiros.

Houve um conflito pelas condições sociais, culturais, etc., e pela exploração econômica. Disso saiu Ribeirão Preto, uma cidade que já nasceu cheia de conflitos e cheia de confronto entre as classes.

Mas isso [os conflitos sociais] é apagado da história. Porque todos os jornais eram ligados ao poder, não registravam essas coisas. E os raros jornais anarquistas que começaram a aparecer a partir da década de 1920 foram perseguidos e desapareceram.

Fala-se em [Ribeirão] "capital da cultura", mas aqui foi uma cidade boêmia. Moral da história: [havia] muito dinheiro, dinheiro a dar com pau, então a vida boêmia aqui foi uma vida extraordinariamente rica. Vinham prostitutas, músicos, aquele negócio, foi uma farra.

Tinha aquele bordel famoso...
Bordéis, etc., etc.. Mas nunca foi uma cidade culta. Foi uma cidade de boêmio. Tanto é que não sobrou nada daquela época. Nada. Se falar: sobrou um escritor, produziu um músico... Não, não tem nada, nada. Apagou. Não tem nada porque não produziu nada, só produziu café e dinheiro. E puta. Isso acabou.

Como é que chama aquele bordel?
Cassoulet. Cassino Antarctica. Sobre o [François] Cassoulet, todo mundo fala que era um empresário aqui... Ele era um gigolô. Um gigolô de classe, claro, agenciava grandes mulheres... Mas, de repente, vem o Crack da Bolsa de 1929, e tudo aquilo vira pó...

Foi um período muito curto de riqueza ribeirão-pretana. Aí a cidade se estagnou e foi se sedimentando. E, a partir de 1935, já existia a cana, mesmo na época do café, a cana foi indo...

A implantação do "moderno capitalismo em Ribeirão"foi ajudado pelo fato de Ribeirão Preto não ter, naquela época, escravidão?
Sim. A escravidão aqui foi coisa mínima.

O que mais caracteriza esse capitalismo? O trabalho assalariado, o investimento externo...
E o investimento particular, também. Com Martinico Prado, quando vem para cá, e começam a programar uma cidade. Martinico Prado faz uma viagem a cavalo, com Afonso Arinos, daqui de Ribeirão Preto até Guatapará, e o Afonso Arinos escreve essa viagem em "Pelo Sertão". Descreve a conversa que tiveram. Então, Afonso Arinos vai dizendo: "Puxa, como é bonito, como é lindo, como é isso, como é aquilo..." Até que chega em Guatapará, isso lá em 1880, só tem japonês e italiano. Ali em Guatapará ele questiona "Como é que aqueles italianos estão ali trabalhando?" E tem um teatro. E os italianos analfabetos cantam ópera no teatro que eles têm em Guatapará. Aí, na volta o Martinico vai falando para ele: "Nossa, nós vamos construir aqui um império, isso aquilo, tal e etc.". E, quando chega a Ribeirão, vão ao alto do Ipiranga e diz: "Aqui eu vou fazer a cidade." Estava tudo planejado.

Mas depois, do auge do café, não sobrou nada mesmo? Você diz: culturalmente não se produziu nada, mas nem politicamente teve um reflexo?
[Demora alguns segundos para responder] Era muito interessante, por exemplo, que o senador [José Alves] Meira Júnior [1875-1952]... Se você pegar, bom, vai lá no Senado, o que o Meira Júnior fez? Não existe. Ela era do baixíssimo clero. Eles representavam um tipo de sociedade que, culturalmente, não tinha voz perante aquelas raposas do Rio de Janeiro. Então, sobrou pouco.

Não tem um grande livro, ou um livro de valor médio de um escritor desse período, um romance... Não, não tem. Tem o livro ["Dioguinho"] do João [Domingues] Guião, outro que fala do café, mas não pode achar que expressem a verdade histórica e nem que tem um valor literário.

Nem a Unesp de Franca produz nada sobre o período?
Eles produzem muita coisa, mas estou dizendo que não se encontra nada que ficasse daquela época [produzido no início do século 20]. Foi uma coisa efêmera. É claro que a cidade foi se consolidando, mas...

Inclusive, a cidade não foi programada para ser o que é hoje em termos urbanos. O Martinico Prado, que era dono de tudo aqui, tinha um plano urbanístico para a cidade. Foi a única vez que a cidade teve um Plano Diretor, se é que se pode chamar de Plano Diretor, que era fazer a cidade lá no Ipiranga.

Se pegar as ruas do Ipiranga, você verá que são ruas largas, enormes. A primeira avenida que tem em Ribeirão é a Dom Pedro 1º, que é enorme.

Aqui [biblioteca Altino Arantes, na rua Duque de Caxias] não era para ser o centro da cidade. Ele planejou para ser lá, depois, com as crises, sei lá por quê, o mercado imobiliário, etc., a coisa virou para cá.

E é interessante que cresceu justamente numa zona em que se estabeleciam os imigrantes italianos, que é essa baixada da Mariana Junqueira, Visconde do Rio Branco, que era chamada de rua dos Sapos.

Era onde se estabeleciam os imigrantes italianos, que tinha pequenos comércios. E é aqui que se expandiu. O que foi projetado para ser a grande cidade não deu certo, é um projeto abandonado.

Mas e aí? Não sobrou nada dessa época, a cidade começou a se organizar, mas bem aos poucos, né?
É, eu acho que a cidade tem várias fases. Por exemplo, a Revolução de 1930, que mudou a face do Brasil, em Ribeirão Preto, ela não mudou nada. Porque, aqui a elite econômica [já] estava quebrada.

Não foi necessário, como aconteceu noutras regiões, Norte, Nordeste, etc., quebrar aquelas elites, vencer aquela gente. A Revolução de 30 teve um papel muito importante no Nordeste porque acabou com o cangaço. Os coronéis mantinham o cangaço. Os revolucionários de 1930, os tenentes, foram lá e acabaram com os coronéis.

Aqui em Ribeirão Preto não aconteceu nada, porque não tinha nada para acontecer. A crise de 1929 já tinha se incumbido de liquidar essa elite.

Então, é muito interessante esse processo. Agora, essa é uma história que, contada como estou fazendo, não interessa a esse desejo de criar ícones, de desmistificar.

Eu acho que é uma coisa até infantil. Eu acho que essas criações de ícones aqui em Ribeirão Preto não são em torno de ideologia. É um saudosismo daquilo que o pessoal não conhece.

É um tipo de romantismo?
É romantizar uma época que não existiu. Foi passageira.

Esse período é baseado num dinheiro que não conseguiu fazer, por exemplo, gente poderosa...
Não, não se formou nada. O dinheiro ficava com as grandes firmas exportadoras. Quando essa gente quebrou, eles quebraram. Os ricos, a elite que existe em Ribeirão Preto, é uma elite imobiliária e da cana.

A elite do café não sobrevive, não restou nada mesmo dela?
Os Junqueiras desapareceram economicamente. Só fizeram nome. A própria Sinhá Junqueira, coronel Quito Junqueira, são produtos da cana [não do café]. Ele mal assinava o nome, mas era um homem de visão fantástica. E aí começou a dominar economicamente, dominou tudo.

Mas nunca foi nada, assim, político. Era um cara que dizia: "eu quero que o prefeito faça isso, o vereador, tal e tal". Aí, com o dinheiro da cana.

Isso já é década de 40 ou 50?
Começa em 1930, 1932. Daí vem 1940, e eles [canavieiros] explodem na grana.

O que surgiu no lugar da elite cafeeira? Essa elite, como a família do [Francisco] Schmidt [1850-1924], desapareceu politicamente?
Desapareceu.

Agora, uma coisa interessante: toda aquela áurea do café não deixou nada. [Por outro lado] A Sinhá Junqueira, que era uma mulher muito simples, deixou muita coisa em Ribeirão, mas deixou baseado no quê? Na cana, nas usinas dela.

Quando é que, politicamente, Ribeirão Preto começa a se formar, se é que se formou? Aí, já sob influência da cana. Como era esse processo a partir da década de 40 e 50?
[Leva alguns segundos para começar a responder] Ribeirão Preto, nessa época, já começa a ser uma cidade de serviços. Ribeirão Preto tem a Santa Casa e a Beneficência Portuguesa. E como era uma cidade gostosa, os médicos vêm todos para Ribeirão. Então, toda a região começa a correr para cá.

Aí, de todo o resquício daquele luxo que havia no café, sobram as lojas. Essas lojas finas começam a abastecer a região. E os colégios também existiam poucos na região, principalmente os colégios religiosos: Auxiliadora, Marista, Santa Úrsula...

Que são colégios pagos.
São pagos. E o colégio do Estado, o Otoniel Mota, que é um grande prestígio no Brasil inteiro. Já nessa época, a partir de 1934, começa a ter a configuração que tem hoje. É uma cidade que tem a cana, algumas indústrias, principalmente a cervejeira, tem a Antarctica e a Paulista, e o setor de serviços, com um comércio forte, já de uma classe superior ao de toda a região, e as escolas e hospitais.

Quero fazer só um parêntese aqui, que é uma outra matéria que começamos a fazer: a cerveja era importante mesmo, a indústria cervejeira? Porque, além da Paulista e da Antarctica, tinha a Livi & Bertoldi...
Muito importante. Mas a Bertoldi era ainda do século 19. [No século 20] Tinha outras também, mas eram cervejarias pequenas, que só atendiam a cidade. Já a Antarctica e a Paulista eram cervejarias de expressão nacional.

A fábrica da Antarctica foi a primeira do interior e, depois, se formou com a Paulista, né?
A Paulista era capital nitidamente de Ribeirão. Aí você vê: o Quarteirão Paulista era dinheiro da cerveja e não do café.

O Pedro 2º começou a ser erguido em 1930. Já era a decadência do café. Inclusive, os ícones, como o prédio Diederichsen, que já não era dinheiro do café, era dinheiro do antigo Banco Construtor. O café já tinha ido para o vinagre. O Schmidt, o Diederichsen, no café, eles perderam. Não sobrou nada.

Eles ficaram com outros negócios que eles tinham. É só ver as datas de quando começou a ser construído. Essa casa aqui [biblioteca Altino Arantes] começou a ser construída em 1935.

Você estava falando que Ribeirão começou a se formar na década de 1940, a indústria da cerveja...
Nessa estrutura, Ribeirão vem crescendo. Quando começa a se formar, tem a mesma estrutura política, quer dizer, os mesmos homens. Já não é o dinheiro do café, mas eles [fazendeiros do café] ainda têm algum poder.

Aí, eles se associam aos novos ricos que vão surgindo e mantêm uma mesma estrutura de poder, que vão formando a cidade. Estamos falando de uma cidade que tem duas indústrias grandes, mais o Matarazzo. Ou seja, era uma cidade de operários.

Depois, começa, a partir da redemocratização, em 1946, depois da guerra, começa a ter eleições. E aí tem uma grande maioria de massa trabalhadora que vota.

Ribeirão surge politicamente só depois da redemocratização?
Aí que começa a mudar. Aí você vê, por exemplo, que a Câmara, já na década de 50, a Vila Tibério começa a ter três ou quatro vereadores. Por quê? Porque eram operários da cerveja. Zé Velloni, Zé Delibo, Guilherme Giro, Olympio Rossi. Todos são operários.

Isso tudo começa a mudar. O primeiro prefeito fora desse eixo [da elite local] que veio para Ribeirão Preto foi o Alfredo Condeixa Filho [1914-1990]. Mas ele é fora daquele eixo antigo de quando os prefeitos eram nomeados. Ele era um estágio de conciliação entre aquilo que vinha surgindo, quer dizer, ele era um cara do populismo do Adhemar de Barros, que era diferente do PRP, aquela coisa mais relaxada.

Há uma conciliação na cidade e vêm correndo por fora outras forças políticas, que não são nem revolucionárias nem reformistas. São simplesmente conflitantes com aquele sistema de hierarquia de poder que existia.

É quando houve a primeira ruptura política, na minha opinião, em Ribeirão Preto, em 1955, com a eleição do Costábile Romano [1905-1966].

Reprodução
O ex-prefeito de Ribeirão Costábile (de terno branco)
O ex-prefeito de Ribeirão Costábile (de terno branco)

Por quê?
Costábile Romano também era um homem do sistema, mas era um italianinho, um padeiro, um imigrante. É a primeira vez que ele se elege. Então, tinha, naquela época, aquele ranço de não aceitar uma pessoa que não tem tradição familiar, que não tem tradição de fortuna, que não tem prestígio social, aceitar para ser alguma coisa. Vereador, tudo bem, mas prefeito...

O Condeixa tinha essa tradição?
O Condeixa era coronel da Força Pública [origem da Polícia Militar]. E, também, ele já era um homem rico, de família tradicional.

O Costábile vem, disputa várias eleições e perde. Cada eleição que ele perde, vai sendo marcado como "italianinho", vai criando aquela coisa e aquela gente que vota nele pensando que "se ele ganha, ele muda essa cidade", justamente acreditando que ele seria aquilo que os inimigos diziam que ele seria.

Mas ele é eleito justamente no centenário da cidade, em 1956, que era um marco também de otimismo no Brasil. É quando o Brasil entra nos anos JK. O Brasil deixa de ser aquela coisa, quando o JK começa a falar aquelas coisas, tal, e aí esse cara se elege e diz "vou fazer uma puta festa". Ninguém sabia em Ribeirão como fazia festa.

Então, ele [Romano] "importa" o Bassano Vaccarini [1914-2002], que era cenógrafo do Teatro Brasileiro de Comédia de São Paulo, e o Jaime Zeiger [que construiu o Teatro de Arena]. Vêm esses dois caras e pensam: o que fazer? Vão àquele lugar abandonado hoje, que era um depósito de café, ao lado da estrada de Sertãozinho, e fazem uma festa ali, que era longe da região central.

O Vaccarini faz umas coisas loucas, uns homens tortos, uma decoração, foi um espanto. É um escândalo! Sai nos jornais, entrevista, comissão de arte, e tal...

Aí tem uma juventude em Ribeirão Preto que ficava lá embaixo, presa, porque tinha o beletrismo, artista oficial, o escritor oficial, o jornalista oficial...

Aí chegam para o Vaccarini e perguntam: "ô, Vaccarini, você é Deus?" Daí o Vaccarini começou: "Ó, na Europa, faz não-sei-o-que-tem, tal, tal, tal, tal, tal" e aqui a gente não tinha nem ouvido falar na Semana de 22....

Sério? Em 1956, a cidade não tinha ouvido falar em Semana de 1922... É uma caricatura, né?
É claro que tinham ouvido falar, mas não tinha repercutido aqui. Os jornais publicavam os sonetos, isso, aquilo, os escritores locais publicavam sonetos...

Quer dizer que o movimento de 22 não tocou a cidade, nenhum artista...
Não. Isso.
Mas daí, com esse pessoal que veio, aí Ribeirão tem uma nova cara. Surge aquele bando de artistas plásticos que, dos anos 60 até os anos 70 começa a ter influência no Brasil inteiro.

Quem, por exemplo?
Odila Mestriner, Francisco Amêndola, as irmãs Sampaio que desapareceram, não sei aonde elas estão. Adelaide Sampaio, uma grande pintora, e muitos outros que surgem em torno das artes plásticas.

O Leopoldo Lima é dessa época?
O Leopoldo vem depois, mas já é um artista marginal. Um artista até que é grandioso demais para Ribeirão, mas completamente incompreendido. Mas ele é de outra época e surgiu em outras circunstâncias.

[Dá uma pausa] Eu estou falando demais...

Não! Continue, é por aí. E aí, causa essa efervescência?
Causa essa efervescência. Se você ver a Câmara de hoje... Era uma coisa assim que não dá para comparar com nada. Eu te falei do Costábile, vai ser prefeito, faz essa tremenda revolução cultural. E que talvez ele nem pensasse em fazer, mas que surge com a simples presença de um homem como o Vaccarini.

Não sei se eles [Vaccarini e Costábile] se conheciam... Mas [Vaccarini] era um homem simples demais, exalava bondade e um artista de grande poder, muito mais de ação social do que a própria arte que ele fazia.

Bom, causa um impacto na cidade e essa elite, essa elite toda se sentiu um pouco inferiorizada.

E isso se reflete na Câmara. A oposição que o Costábile teve é o tipo de oposição que a UDN fazia com o João Goulart [1919-1976, presidente deposto pelo Golpe de 1964]. Eram discursos em cima de discursos, e rádio, tal. Tinha a rádio PRA-7, que contratava cômicos para fazer o programa... Esqueci o nome... "Cadeira de Barbeiro". Então o barbeiro, o cara ia lá, fazendo programa cômico todo dia contra o prefeito. Denúncias, uma em cima da outra. Pedidos de impeachment.

Foi uma coisa muito efervescente, uma época de ruptura. Que, depois, foi se acalmando, como tudo aqui em Ribeirão Preto.

Mas ele voltou a ser eleito, né?
Deputado, não como prefeito.

Foi a primeira ruptura política da história ou do século 20?
Eu acho que foi a mais importante da história. A queda do café teve uma importância econômica, social, etc. Mas a eleição do Costábile teve uma influência política e cultural que marcou a cidade antes e depois.

Não entendi exatamente como foi que o Costábile conseguiu chegar ao poder?
A cidade tinha [fábricas como a] Matarazzo, Antarctica, Paulista e várias outras pequenas indústrias e um comércio muito grande. Então, é uma cidade de imigrante, de imigrantes italianos. Naquela época, por exemplo, eu morava na Vila Tibério e era mal visto. Eu era "índio".

Índio?
Porque morávamos num lugar atrasado, aquele bairro que só tem italianos por todo lado. E tinha a Mogiana, também.

Que ano você veio para cá?
Eu vim em 1952.

Toda essa gente [imigrantes da Vila Tibério, por exemplo], de repente, vai criando voz e vota numa pessoa que é igual a eles. Assim como muita gente foi votar [em 1960, para presidente] no Jânio Quadros [1917-1992]. Não era um negócio ideológico, mas de identificação. "Pô, não vou mais votar nessa 'coronelada'".

Você diz que, depois, começa a acalmar de novo. Por quê? Porque o Costábile chega ao poder e começa a ter relacionamento com outros que detêm o poder também?
Porque ele era ruim para o sistema. Isso aconteceu justamente pela presença, principalmente, do Vaccarini. O Vaccarini era uma pessoa muito simples e as pessoas começam a acreditar que uma política cultural, mesmo quando não é oficial, pode mudar as coisas. Então, a mudança cultural teve reflexos políticos.

Mas de repente, eles começam a frear as coisas. Aí começa a fazer as alianças e a coisa se acalma. Ele não é reeleito, é eleito deputado...

Imagino que isso deva ter formado alguma elite política diferente de que existia, né? Ou não?
[Leva alguns segundos para responder] Aí surgiu uma Câmara muito combativa, inclusive com representantes da ala de esquerda, do Partido Comunista, etc., que se candidatavam por outros partidos. Mas não se consolidaram novas lideranças. Ficaram as mesmas lideranças.

Até que, a partir de 1959, começa a haver no Brasil os movimentos populares, no campo e na cidade. Então, começa a haver, naquele período, as ligas camponesas no Nordeste.

Esta região de Ribeirão Preto, era uma região de trabalho completamente desorganizado nas usinas. Os trabalhadores eram muito mais explorados naquela época do que hoje e não tinham nenhuma organização. Então, começa a haver um trabalho, a esquerda, ao lado do Partido Comunista, e a esquerda católica vai conquistar essa gente que precisa se organizar.

Nesse período surge o padre Celso Ibson de Syllos, que era diretor do "Diário de Notícias". E ele começa a organizar espécies de sindicatos rurais. Era padre, quer dizer, teoricamente, tinha o aval da Igreja Católica e começa a penetrar nessa gente e organizar a massa trabalhadora camponesa.

Isso também tem reflexo na cidade. E, em torno dele no jornal "Diário de Notícias", começam a vir aqueles jovens da JUC, Juventude Católica, JEC (Juventude Estudantil Católica), etc.

Entre eles se destacava um repórter, que era repórter de rádio...

Que é o hoje deputado estadual Welson Gasparini [PSDB]?
Que é o Welson Gasparini. Eu não sei se premeditando qualquer coisa ou não, o padre Celso estimula esse cara, dá força para ele. Então, ele vem crescendo.

O padre dá todo aquele prestígio para o Gasparini, que cresce nesse movimento, não no movimento migratório, mas na cidade. Tinha enchente, ele [Gasparini] vai, [o jornal] tira fotografia dele com microfone, com água até o peito, isso, aquilo, defendendo o povo, etc., etc. E aí ele entra para política e se elege [primeiro como vereador, em 1960, e depois como prefeito, em 1963].

Acaba de se eleger, aquilo é uma grande ruptura em Ribeirão Preto. Outra grande ruptura. A eleição dele [para prefeito] é uma eleição claramente com vitória da esquerda católica. É católica, mas é esquerda.

Mas naquele momento o Gasparini se identificava com a esquerda?
Ele representava uma esperança.

O Gasparini teve ligação, antes da eleição ou pouco depois, com o partido do Plínio Salgado [1895-1975]...
Ele era integralista, ele era do PRP. Inclusive, muitos partidos que o apoiaram, eram ligados ao PRP.

Ele foi do PRP...
Ele foi da juventude integralista. Hoje ele diz que não, que isso era com o partido.

Então, ele foi eleito. Muita gente sabia que ele não tinha como representar as ideias, por exemplo, do padre Celso. Mas é eleito e o povo: "Pô, esse cara aí vai fazer alguma coisa." Veio o golpe de 64 e a primeira medida que ele tomou é passar para o lado de lá.

Foi assim, automático, né?
Claro! Na hora!

Porque, curiosamente, o Gasparini é apontado pelos militares, depois do golpe, como o homem dos usineiros.
Exato! Ele sabe com quem se alinhou. Até hoje, ele é advogado do Sindicato Rural. E tem mais: a Folha noticiou isso já: quando houve aquela intervenção [da Polícia Militar] em Guariba [na década de 1980], ele mandou verbas, dinheiro para pavimentar [cita reportagem de 26/10/1988, disponível no Acervo Folha.

Mesmo assim você considera a eleição do Gasparini como uma ruptura?
A eleição, sim, foi uma ruptura. Naquele momento, quando os militares tomam o poder, eles despejam dinheiro, depois, para criar uma imagem popular. E Ribeirão se beneficia disso, dessa dinheirama que vem. Então, a primeira gestão dele foi muito boa. No aspecto educacional e no aspecto urbano. Essas avenidas aí, a Treze de Maio, por exemplo, foi ele que fez, mas veio no pacote militar. Na época, não tinha oposição, não tinha nada e se fazia o que os militares mandavam fazer.

Ouço falar que o primeiro governo dele [1964-69] e o primeiro do Antônio Duarte Nogueira [1937-1990, pai do deputado federal Antônio Duarte Nogueira Júnior (PSDB)], prefeito entre 1969 e 73, foram boas administrações.
É verdade. Dentro das características deles. Não do que poderia e deveria se fazer. Mas dentro da personalidade de cada um deles. Não podia esperar deles nada mais do que eles fizeram.

O Nogueira até tinha uma formação intelectual, política, não só porque era médico, mas tinha uma consciência social mais apurada que o Gasparini. E nunca se apresentou como de esquerda, nada.

Após esse primeiro governo do Gasparini, vem o golpe. O golpe atrapalhou a política ribeirão-pretana, como atrapalhou todo o país, no sentido de formação de lideranças?
O golpe desmontou a política. A Câmara tinha uma bancada de esquerda. Foi todo mundo cassado.

Como o Pedro [de Azevedo Marques]...
Sim. E tinha mais uns dois, três. Uma vereadora...

O jornalista lá...
Não, o [Luciano] Lepera [1923-2010] não era. Ele já tinha sido cassado antes do golpe.

E não só isso. Aqui em Ribeirão Preto tinha um comando de caça aos comunistas e muita gente que hoje posa de democrático vivia apontando: "Aquele é comunista, prende aquele, prende aquele". E os caras prendiam e arrebentavam.

Quem?
Não, citar nomes... Aquele negócio. Se citar nomes, não pode provar...

E aí? Desmontou politicamente a cidade?
Exato. Desde então, nunca mais tivemos uma Câmara boa.

Nem hoje?
Nem hoje, até hoje. Nunca mais tivemos uma Câmara boa. Você pode pegar um vereador ou outro, que são as exceções. Mas o conjunto da Câmara, não. Nunca mais teve uma Câmara boa.

Até que chegamos ao cúmulo de hoje não existir mais nem Câmara. Sai nos jornais aí, tranquilamente. A prefeita manda isso, os caras aprovam, não aprovam. A troca de favores é pública. Ninguém tem pudor.

[Tanto que] Outra grande esperança veio [somente] com a eleição do [ex-ministro Antonio] Palocci [em 1992], que vem de um movimento mais ou menos de massa, naquilo que se esperava que o PT fosse, representasse.

E sempre quando vem -- é interessante quando tem esse fluxo --, o próprio político é obrigado a fazer alguma coisa de bom. Porque ele, mesmo contra a vontade, ele não pode refrear o desejo daquela massa, que ainda é muito forte.

Então, quando o Palocci foi eleito, a militância do PT era muito forte. Ele não tinha como não fazer o que ele fez de bom.

Você está dizendo que o primeiro governo do Palocci teve qualidades?
Teve aspectos muito bons. Apesar dele. A participação popular nas decisões que foram tomadas. [Houve] Uma mudança de trato político entre a própria Câmara, esse negócio todo.

Houve também uma mudança na saúde, que foi muito importante. E na educação, mas principalmente na saúde. Foi quando começou a se prestar atenção com mais seriedade na saúde.

Por quê? Porque havia uma militância, inclusive de funcionários, que acreditavam naquilo e se dedicaram. Na saúde, eu assisti aquele pessoal todo entusiasmado e, aos poucos, aquele poder foi sendo comido pelas beiradas... Latas de ervilha com massa de tomate.

Isso [molho de tomate com ervilha] foi no segundo governo. No primeiro foi o caso [Rogério] Buratti, que esta Folha revelou em 1994.
Pois é, então. É interessante isso. De repente, o próprio governo não consegue fazer diferente do que as massas querem. Isso não é nada de revolucionário, é psicológico.

Mas foi uma ruptura? Palocci foi uma ruptura?
Foi uma ruptura. Não foi tão grande quanto seria a do Gasparini. Porque [a eleição do] Gasparini [em 1963] foi uma vitória contra as forças estabelecidas, bem sólidas. A do Costábile foi ainda muito mais evidente. A vitória eleitoral do Palocci era uma coisa esperada, porque o inimigo era uma coisa decadente.

Palocci ganhou na primeira eleição do Duarte Nogueira.
Não me lembro. Mas isso é fácil de ver.

Sim, foi. Mas a grande ruptura foi a eleição do Costábile?
Sim, eu acho que foi.

Ele deixou herdeiros na cidade [o ex-deputado Marcelino Romano Machado e o vereador Maurilio Romano Machado (ambos do PP)]. O que diz deles?
Nem chegaram perto. Não dá para comparar o Marcelino... O Costábile era um homem dinâmico, um daqueles caras que enfrentavam o mundo, sabe. Um político numa época em que política era um combate, que tinha que andar armado. Então... Era uma pessoa sem cultura, o Costábile não escrevia.

Agora, há quem diga que a eleição da prefeita Dárcy Vera (PSD) foi uma ruptura em 2008 [quando ela ainda era do DEM]. O que você acha? Mulher, veio do povo, foi eleita no primeiro turno contra um político tradicional [Gasparini] que estava no poder... Ela própria já se colocou como uma "novidade" depois que um "mesmo grupo" --segundo ela, Gasparini (quatro vezes prefeito), Nogueira pai (duas) e outros-- governou Ribeirão por mais de 40 anos...
Eu acho que a eleição dela foi o coroamento do populismo. [Mas] Se fosse outra mulher, que tivesse a mesma história de vida dela, que fosse o oposto dela ideologicamente, também seria eleita pelo carisma. Ela foi eleita pelo carisma e pelo populismo.

Se perguntar a quem votou na Dárcy [em 2008]: "o que você esperava?" A pessoa não sabe dizer. Não esperava nada. O discurso dela é: "vou pôr cobrador; em 30 dias resolvo a saúde". Todos eles falavam, aliás, essas besteiras. Ela não tinha nenhuma proposta e nem precisava. Foi simplesmente aquela avalanche populista.

E ela veio do rádio, também, que é um fenômeno local. O próprio Gasparini veio do rádio, o que o Divo Marino chamou de populismo radiofônico.
Eu acho que nem é populismo, é uma coisa um pouquinho abaixo do populismo. O Adhemar de Barros era populista...

Então, o natural dessa gente [políticos que querem ser populistas] é uma espécie de... como é a palavra?... É uma espécie de subproletariado. Existem pessoas que não pertencem a uma classe nem a outra classe, é um intermédio. No Brasil, existe classe A, classe B, classe C, classe D, o que é classe D? E ainda tem classe E. Já estão falando em classe E. É uma espécie de subproletariado. Uma pessoa que não tem nenhuma convicção, ela está desligada da sociedade como identidade de classe. Então, é essa coisa popularesca, que não chega a ser populismo.

Mas eu não entendi. A Dárcy entra no populismo ou entra no time do...
A Dárcy tem a personalidade popularesca. Bem falante, simpática, de fácil comunicação. O tipo que o sistema de poder pediu a Deus.

O populismo está muito ligado ao assistencialismo, também. Você acha que a Dárcy segue por esse caminho? Ela também tem base no assistencialismo, com o Movimento do Bem.
Exato. São pessoas que não representam nenhum perigo. Então são toleradas. Não só toleradas, mas incentivadas e financiadas. Quais as alianças que a Dárcy faz? Vai fazer alianças com os setores imobiliário, canavieiros, industriais... Você não vê ela fazer uma aliança com o MST, com os sem-teto, sabe?

Numa palestra sua, ano passado ou retrasado, você defendia o PT. Você fez uma afirmação assim: "hoje houve uma evolução econômica no país"...
Isso é inegável!

É uma defesa do PT?
Não, não é uma defesa, é uma constatação. Você não pode negar que, a partir do que o Lula fez, a distribuição de renda melhorou. Por exemplo: o Bolsa Família. Pode falar: "Ah, mas é esmola...." Claro que é esmola. Mas lá no Nordeste, isso é o leite das crianças, entendeu? Lá no Nordeste, é só o que eles têm. E mais nada. Então, com assistencialismo ou não, houve uma evolução.

Esse aumento do consumo todo acaba beneficiando a sociedade como um todo. Se é um aumento alienado, se antes de tratar de dente a pessoa compra um automóvel, se antes de mandar o filho para a escola ou fazer um plano de saúde ele compra uma televisão de plasma, é outra coisa. Mas que houve uma evolução do poder econômico, isso houve. Então, não é uma defesa do PT. É uma constatação. Perfeito seria se ele rompesse essa estrutura econômica, acabasse com a picaretagem que corre solta por aí.

Agora, e o caso da Dárcy? Não há essa militância [que o PT tem], mas há uma pressão popular. Há aspectos positivos no governo Dárcy?
Aspecto positivo é ela, pessoalmente. É ela, por exemplo, me tolerar [com as colunas no jornal "A Cidade"]. A Dárcy, diferentemente de outros prefeitos, não me consta que ela tenha perseguido um jornalista por criticá-la.

Você tem uma forma peculiar de tratar a prefeita em suas colunas. Por que você a chama de alcaidessa?
Alcaidessa é sinônimo de prefeita.

Sim, eu sei, mas por quê?
Quando ela foi eleita, ela era tão diferente... E não por ser mulher, ela tem uma personalidade diferente. Ela é expansiva, tal. Logo que ela acabou de ser eleita, ela dançou na praça 15, o dançarino a jogou para o ar. Isso não é comportamento de uma prefeita.

Ela posou na "Veja" fantasiada de Penélope Charmosa. Isso não é comportamento nem de vereadora. Então, para diferenciar, para dizer "ela é uma mulher diferente", chamo, então, de alcaidessa. Que não é ofensivo...

Nesses últimos anos, Ribeirão Preto teve políticos com cargos importantes no Estado e no governo federal. Hoje, esse cenário mudou. Por quê?
Acho que não é um problema da cidade. É um problema da política brasileira. E desses políticos que se deixam seduzir pelo poder e metem os pés pelas mãos.

Por exemplo: O Nogueirinha é líder do PSDB, vai ser presidente [é atual presidente estadual da legenda], mas e daí? Isso não reverte quase nada para Ribeirão Preto. Nem pessoalmente, para ele.

Ele foi líder do governo [na Câmara, em 2011] e não conseguiu levar uma eleição [no ano passado, contra a Dárcy] que estava ganha, praticamente. Inclusive com pesquisas muito controversas. Apontavam a vitória da Dárcy com uma margem extraordinária. Essas pesquisas tiveram uma grande importância no resultado da eleição. E, para falar a verdade...

Mas nem ele [Nogueira] questionou isso.
Justamente. Esses caras são muito estranhos. Mesmo esse problema da cassação da Dárcy, você não vê a oposição em cima disso. A oposição não está nem aí.

Estamos encerrando? Ou será que será necessário um segundo tempo?
Não posso falar mal da imprensa?

Sim.
Uma coisa interessante dos meus milhares de anos, né? Antigamente, os jornais eram piores. Os jornalistas eram melhores. Hoje os jornalistas são piores e os jornais são melhores.

Argumente.
Tecnologia. Jornalismo virou uma técnica. Antigamente, era quase que uma arte. Antigamente era o cara que chegava e escrevia, tal, cheio de coisa.

Mas na sua opinião, isso no geral? Ou acha que é só Ribeirão Preto?
É geral, mas eu vivi aqui. Então, antigamente, quando eu tinha, na primeira redação de 'O Diário' que eu estive, tinha uns caras, Divo Marino, só intelectuais. Chegava à noite na redação, ficavam discutindo Eça de Queiroz a noite inteira. Ficavam disputando quem fazia o soneto mais rápido...

Mas, por outro lado, muitas pesquisas falam que, até por não ser uma profissão conhecida, o jornalismo era muito amador.
Não era só amador, como era safado.

Sim. Mas estou pensando nisso, estou pensando nos jornalistas. Claro que a descrição serve para o jornalismo...
Mas esses amadores é que faziam os jornais. Praticamente não existia redação. O jornal "O Diário" tinha o redator-chefe.

*

RAIO-X - JÚLIO JOSÉ CHIAVENATO

VIDA
Nasceu em 3.jan.1939, em Pitangueiras (SP); mudou-se para Ribeirão Preto em 52

CARREIRA
Como jornalista, começou em 1965 no jornal "O Diário", de Ribeirão, onde hoje é colunista de "A Cidade". Foi ainda repórter do "Coojornal" (RS)

OBRA
É autor de 44 livros, entre os quais "Genocídio Americano" e "Massacre da Natureza", republicados até hoje


Endereço da página:

Links no texto: