Folha de S. Paulo


Baleada há um ano, menina de 11 anos tem recuperação 'de outro mundo'

Há um ano, Jenifer Santos de Freitas, 11, não teve condições de abraçar Papai Noel ou mesmo de se encantar com as luzes de pisca-pisca. Estava internada na UTI do Hospital das Clínicas de São Paulo tentando sobreviver após ser atingida por um dos 24 tiros disparados contra o carro em que estava com a família, às vésperas do Natal.

Mesmo o veículo sendo atravessado por balas calibre 380, somente ela ficou ferida com gravidade. O pai, Luciano dos Santos Silva, 38, que trabalha em uma distribuidora de gás, levou apenas um tiro de raspão na perna.

A força do projétil causou em Jenifer uma lesão medular, o que imediatamente tirou seus movimentos dos membros inferiores, o controle de tronco e outras funções do organismo, como a capacidade de controle urinário.

"Sempre ia no banco da frente para que minha mãe e minha irmã mais nova [Sofia, 2] pudessem ir atrás, com mais espaço. Naquele dia, insisti ao máximo com meu pai para mudar de lugar e ele acabou deixando. Não senti dor quando a bala entrou. A sensação era a de que eu estava flutuando. Já não sentia mais minhas pernas", diz Jenifer.

Até hoje, a família, que mora em Parelheiros, no extremo sul paulistano, mesmo local onde houve o crime, não sabe a razão de ter sido vítima do ataque. O pai pensa que criminosos devem ter confundido o carro, com películas escuras nos vidros, com o de algum grupo rival.

O luto de Jenifer diante de sua nova condição física durou um mês. "Não falava com ninguém, não queria conversar, não queria nada. Nem o Natal eu vi passar. Não era sofrimento. Era um nada. Só quando comecei a fazer reabilitação fui voltando a ter vontade das coisas."

MUDANÇAS

Após quase 90 dias em hospitais e três procedimentos cirúrgicos complexos –um deles para uma meticulosa retirada da bala e controle de suas consequências, como queimaduras internas–, Jenifer foi mandada para casa, mas, agora, tendo que usar uma cadeira de rodas para seus deslocamentos.

Antes, porém, os médicos descobriram que a lesão medular da menina tinha sido incompleta, o que significava que ela tinha potencial de recuperação de movimentos e de sensibilidade.

Foi encaminhada, assim, para a Rede de Reabilitação Lucy Montoro, onde teve uma internação para receber tratamentos intensos para tentar reativar habilidades perdidas, num processo multiprofissional, que envolve fisioterapia, terapia ocupacional, médicos fisiatras e muito esforço pessoal.

Jenifer afirma que não estranhou a cadeira de rodas nem teve receio de não poder mais caminhar como antes. "Ser cadeirante é normal. É difícil com escada, degrau, essas coisas, mas sempre tem alguém que ajuda. Na minha escola, fizeram adaptações para eu conseguir estudar."

Mãe de Jenifer, a diarista Andreia Helena de Freitas arrisca uma explicação que ajuda a entender a naturalidade da filha diante de sua nova realidade física.

"Quando ela tinha seis anos, foi a única menina da classe que se propôs a ser par, na festa junina, de um aluno cadeirante. Foi lindo e emocionante. Hoje ela está cadeirante... O mais importante para nós é a nossa filha estar viva, alegre. O resto a gente aprende a lidar. Deficiência não é coisa de outro mundo, não", diz a mãe.

A capacidade de recuperação da garota, esta sim, foi coisa de "outro mundo". Em poucos meses, ela retomou levemente o movimento e a sensação tátil do pé esquerdo. Com menos de um ano de treino e ajuda de órteses, fica em pé e já experimenta passos em um andador.

A médica fisiatra Fernanda Martins, que atende Jenifer na Rede Lucy, conta que diversos fatores são responsáveis pela recuperação da garota e que procedimentos médicos ágeis e bem administrados, como o cuidado com a preservação de fibras nervosas da medula, fizeram a diferença.

"A Jenifer tem uma maturidade emocional diferenciada e conta com um importante engajamento da família, que não demonstra ansiedade e dá muito apoio a ela. Ela tem conseguido progredir com objetividade, em um tempo menor que o previsto."

Na mesma linha vai a fisioterapeuta Danieli Marconi, que participa de sessões semanais com a menina.

"Ela tem tido ganhos progressivos. A capacidade de resiliência que ela tem e a sustentação familiar fazem os resultados serem melhores."

SONHOS

Neste Natal, Jenifer não pediu nenhum presente em especial aos pais, que viveram praticamente de favores durante o ano porque deixaram os trabalhos para cuidar integralmente da filha mais velha. A caçula ficou sob os cuidados da avó.

"Ia começar em um novo emprego, com carteira assinada, em janeiro, mas com o acidente deixei tudo de lado para cuidar dela. Depois, meu marido a acompanhou na reabilitação e eu fui fazer faxina. Aos poucos a vida está voltando para os eixos."

Luciano acabou ficando bem conhecido no centro de reabilitação, pois não é comum que pais acompanhem os filhos em processos de recuperação. O mais comum é a missão recair sobre as mães.

"Choro quando lembro tudo o que ela passou, choro por não ter sido eu quem se feriu em vez dela. Foi a fé o que sustentou nossa família e me deu forças. Acompanhar minha filha na reabilitação, ver as melhoras dela, me ajudou a seguir em frente."

Quando questionada a respeito de seus sonhos, a menina não titubeia e diz que pretende estudar para ser fisioterapeuta. Em seguida, com a voz embargada, pensa e diz baixinho: "Também queria voltar a andar".

Segundo a médica Fernanda Martins, o desejo da garota pode não ser sonho, pois uma melhoria do andar para ela é uma realidade.

"Ela já está em treino com o andador. Estamos controlando espasmos com aplicação da toxina botulínica e há bastante chance de tornar a marcha dela mais funcional. Não é uma expectativa irreal, é algo em que vamos trabalhar para atingir o objetivo."


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