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Incentivo a artes e esportes derrubam uso de drogas entre jovens na Islândia

Diogo Bercito/Folhapress
Gramado coberto - Time Breidablik em Reykjavik. Foto: Diogo Bercito/Folhapress DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM
Treino em gramado coberto do time Breidablik, em Rykjavik, parte do programa islandês

As estatísticas do uso de drogas entre jovens na Islândia parecem exigir algum tipo de explicação mágica, como aquelas das lendas desta gélida ilha, povoadas por elfos e trolls.

A porcentagem de islandeses de 15 e 16 anos que fumam cigarro todo dia foi de 23% a 3% entre 1998 e 2016, e a taxa dos que provaram maconha caiu de 17% a 7%. A porção desses jovens que ficaram bêbados nos 30 dias anteriores quase sumiu: de 42% a 5%.

Mas a solução, que a Islândia agora começa a exportar, com interesse de chegar à cidade de São Paulo (leia texto abaixo), é algo prosaica: se chama, dizem os seus criadores, "senso comum".

Partindo da premissa de que jovens recorrem às drogas para lidar com desafios típicos da idade –estresse, depressão, busca por riscos–, o governo do pequeno país europeu decidiu há duas décadas oferecer alternativas saudáveis como esporte e artes.

A prefeitura da capital Reykjavik, onde moram 120 mil pessoas, oferece quase 600 atividades para o próximo trimestre, investindo 6 milhões de euros (R$ 23 milhões) para subvencionar a participação de jovens. A inscrição é feita pelos pais via internet.

A reportagem da Folha se encontra com o psicólogo Gudberg Jonsson, 48, diante do centro recreativo Throttor, que atende sete escolas da capital. Há quadras de futebol, pistas de corrida, academia, piscina e ginásio de artes marciais – naquele fim de tarde, tudo abarrotado de jovens.

Gudberg se envolveu com o combate às drogas no início dos anos 1990, quando era voluntário em um centro de reabilitação de adolescentes. Cumprimentando pais e filhos que passam por ele, enquanto explica o projeto, ele diz que a mudança nestes últimos 20 anos foi drástica.

Com a transformação cultural, em que jovens deixaram de usar drogas, preferindo atividades extracurriculares, ficou difícil ser o único a se desviar. "É impossível você fazer parte de um grupo de jovens saudáveis, ocupados, e ser o único deles a fumar. Não é mais 'cool'", diz.

'QUERO SER VICIADO'

A tese do "senso comum forçado", que está na base do modelo islandês, é explicada à reportagem pela cientista social Inga Dóra Sigfúsdóttir, 50, pesquisadora da Universidade de Reykjavik e uma das responsáveis por essa revolução. "Se você perguntar a um jovem o que ele quer ser quando crescer, ele nunca vai responder 'eu quero ser viciado em drogas'", diz.

Inga Dóra criou em 1997, aliada a outros pesquisadores, o projeto Juventude Islandesa. O primeiro passo foi um levantamento estatístico do comportamento jovem, para depois sugerir políticas– àquela época, o uso de drogas entre jovens era quase epidêmico no país.

A etapa seguinte foi recrutar os pais. Inga Dóra convenceu os progenitores, por exemplo, a passar mais tempo com os filhos, a incentivá-los a praticar mais esportes e a proibir que quem tem menos de 16 anos saia de casa após as 22h no inverno e após a 0h no verão.

Essa espécie de toque de recolher é parte de um termo de responsabilidade circulado pelas escolas e assinado pelos pais. As cláusulas, que variam de cidade a cidade, também incluem proibir festas sem monitoramento em casa e restringir os videogames violentos.

Não são leis, e ninguém é punido caso descumpra o pacto. Mas os acordos levaram a uma mudança cultural, e os pais que deixam o filho sair à noite passaram a ser mal vistos pela comunidade –uma pressão social benéfica, aos olhos do projeto. "Antes, se um pai proibia o filho de sair, o jovem dizia 'mas todo o mundo pode ir à festa, menos eu'", diz Inga Dóra. "Ficou mais fácil explicar que essas são as regras para todos."

As normas são decididas entre os pais com o apoio da ONG Casa e Escola, fundada em 1992. Com quatro funcionários, em um escritório nos aforas da Reykjavik, essa organização coordena as associações de pais em todo o país, de 330 mil habitantes.

"Temos o trabalho mais importante na prevenção: convencer os pais a se interessar pelos filhos e a criar uma comunidade", diz Hrefna Sigurjónsdóttir, 39, diretora da Casa e Escola. "Quando eu era jovem, havia pressão para fumar e beber, e começar aos 16 anos era visto como tarde", afirma. "Era fácil mentir aos nossos pais ou convencê-los a nos deixar sair."

"Hoje, ninguém quer ser o pai ruim que deixa o filho burlar as regras", afirma – minutos antes, ela havia interrompido a entrevista para falar ao telefone com a filha. "Ela é a minha prioridade."

MODELO EM SP

Quando o projeto Juventude Islandesa começou a ter resultados, uma década depois da estreia, governos e prefeituras de outros países europeus passaram a importar o modelo. "Vieram nos perguntar, 'o que vocês estão fazendo de bom?'", diz à Folha Jon Sigfússon.

Jon, irmão de Inga Dóra e também um pesquisador universitário, lidera a expansão do programa. Já são 35 cidades europeias, além de projetos-piloto na África. A versão internacional se chama Planeta Juventude e já atraiu o interesse de dois brasileiros. O advogado Ricardo Amaral e André Leitão, diretor da ONG Compassiva, estiveram em Reykjavik em novembro para conhecer o projeto e recolher informações.

Eles planejam abordar autoridades brasileiras com essa proposta, a começar pela Subprefeitura da Sé."Percebemos que os islandeses estão 20 anos na nossa frente", diz Amaral. "Nosso desafio é cultural, de as prefeituras pensarem nas próximas gerações, nos próximos prefeitos."

A parceria com o programa islandês, que envolve a transferência do conhecimento, custa até 10 mil euros por ano (R$ 38 mil) –para funcionar no Brasil, o projeto teria de ser custeado por uma prefeitura ou por doações canalizadas por ONGs.

Apesar do modelo ter sido criado em um país de 330 mil habitantes, Jon insiste que pode ser repetido em outros locais. "Dizem que só conseguimos reduzir o uso de droga porque somos uma ilha, mas Malta também é uma ilha, e tem problemas enormes."

No caso da cidade de São Paulo, no entanto, ele recomenda que o projeto seja implementado aos poucos, bairro por bairro, para ter um controle melhor das estatísticas. Por isso Amaral e Leitão pensaram na subprefeitura da Sé. "Quando lemos sobre o programa, pensamos 'deu certo para eles, mas não vai funcionar no Brasil'", diz Leitão. "Mas então vimos que outros países estavam implementando o modelo também."

Editoria de Arte/Folhapress
USO DE SUBSTÂNCIAS NA ISLÂNDIA

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