Folha de S. Paulo


Opinião

'Já sofreu assédio?' deveria ser a pergunta feita na mesa do Natal

Então é (quase) Natal, e se aproxima aquele momento maravilhoso de confraternização em família, tão propício aos questionamentos a respeito das conquistas no ano que chega ao fim.

Já arrumou um namorado? Já encontrou trabalho? E o neném, quando vem? Tão certa quanto o peru e o arroz com passas é a presença à mesa das clássicas cobranças sobre a vida da mulher e o cumprimento do que a sociedade lhe atribui como papel.

Oras, se normalizamos a este ponto a obrigatoriedade de ritos de passagem antiquados, injustos e que, em grande parte das vezes, não são garantia nenhuma de felicidade, proponho que acrescentemos à lista de perguntas direcionadas às moças da família, desde sua mais tenra idade, a indagação: "E o primeiro assédio, queridinha, já sofreu?".

Para que as mais velhas, já balzaquianas, não se sintam excluídas, pode-se também questionar algo na linha de quantos homens, só neste ano, tiveram comportamentos abusivos ao seu redor.

Tudo muito natural. Afinal, se quase metade das brasileiras afirma já ter sofrido algum tipo de violência sexual de qualquer natureza antes mesmo de completar 16 anos, há claramente uma contagem regressiva para que as meninas da minha e da sua família se vejam em meio a uma situação como esta –é apenas questão de tempo.

Se nossos parentes, os seus e os meus, forem do tipo que segue à risca as tradições nacionais, muito provavelmente ouvirão sem espanto as respostas afirmativas, e procederão às rabanadas e ao amigo secreto na sala de estar.

MUITO MAIS

Os dados do Datafolha de modo algum me surpreendem. Minto: surpreendem, mas não por considerá-los assombrosamente elevados, pelo contrário. Eu achava, na verdade, que não éramos apenas 42% da população. Penso que somos muito mais.

Tivesse batido à minha porta, o pesquisador tomaria quantas xícaras de café coubessem no espaço de tempo necessário para eu lhe contar minha longa trajetória. Tirando uma margem de erro em relação à idade, não fujo absolutamente à regra do que acontece com as mulheres no Brasil. Já fui vítima de todos os tipos de assédio, nos mais variados ambientes e momentos da vida.

Assédio sexual

Na maioria deles, demorei a relatar ou pedir ajuda –nós, vítimas, temos inúmeros motivos para tomar atitudes como esta, ainda que saibamos que seremos culpabilizadas em algum momento justamente por nos calarmos. No entanto, depois de um assédio sexual sofrido no trabalho, achei que era hora de finalmente denunciar.

Falar a verdade me custou o emprego e algumas amizades. Ouvi de figuras famosas do jornalismo que de alguma maneira eu teria provocado o assediador –e não, estas figuras não eram homens, e sim mulheres com cargos semelhantes ao meu, algumas escrevendo até hoje em espaços públicos colados aos meus.

Justamente por isso pesquisas como essa continuarão trazendo números que a princípio nos assustarão, nos farão temer pelas mulheres que amamos e também pelas que nem conhecemos, mas que, em bem pouco tempo, cairão no esquecimento. No fluxo da padronização.

Em um país que computa vítimas, mas não as acolhe, é natural esperar que nada mude a curto prazo, a menos que estejamos cada vez mais unidas e organizadas. Que levantemos a voz e respondamos que não, ser assediada não é normal. Nem aos 16, nem aos 30, nem nunca.


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