Folha de S. Paulo


Aposentado cata papelão para depois comprar comida a moradores de rua

Quem vê de relance a Kombi 1989 entupida de quinquilharias e conduzida pelo aposentado José Comitre, 70, pode achar que ele é só mais um catador de papelão e de outros materiais recicláveis que percorre as grandes cidades.

Mas a realidade é que ele faz o valor do lixo recolhido pelas ruas de Jundiaí, a 58 km de São Paulo, virar comida para cem moradores de rua.

Parte da aposentadoria de R$ 1.200 de seu José, que trabalhou a maior parte da vida em uma fábrica de calçados, também vai para a produção das cem marmitas entregues todos os domingos em um viaduto próximo à estação ferroviária da cidade paulista.

"Domingo é o dia mais feliz da minha semana. É quando confraternizo com os mais pobres. Eu me transformo quando estou entregando as marmitinhas, abraçando aquelas pessoas tão necessitadas, tão carentes de afeto e que são tão agradecidas."

Para realizar o trabalho, que começou há cinco anos e se ampliou aos poucos, o aposentado conta ainda com oito voluntários para o preparo de comida e dezenas de doações.

"Tem uma doutora que traz aqui em casa cinco pacotes de arroz toda semana, sem falta. O pessoal do açougue dá um descontinho, outro ajuda com ovos e vamos seguindo em frente", conta.

A coleta de papelão na rua acontece diariamente, pela manhã e à tarde. Chamados de emergência para a retirada de material também são atendidos. Moradores de condomínios de Jundiaí já conhecem o trabalho e deixam o material reservado para ser levado pelo aposentado.

"Não dá para arrecadar muito [cerca de R$ 50 por dia], não, porque acabo gastando bastante combustível com a Kombi velha [cerca de R$ 20, por dia], mas tem sido o suficiente para comprar condimentos e incrementar a comida do pessoal que tanto precisa", conta o aposentado.

MUITO ESFORÇO

Durante as três horas em que a reportagem esteve com ele, o aposentado mostrou euforia e disposição o tempo todo. O braço direito dele é a mulher, a também aposentada Maria Aparecida Nicolau Comitre, 60.

Ela faz bico de serviços gerais, ganhando R$ 1.000, revertidos à iniciativa solidária. Aos domingos, comanda ao lado do marido a produção da comida feita em uma cozinha improvisada no quintal da casa simples onde moram.

A família acaba ajudando no trabalho de separação do material colhido na rua por seu José, mas deseja que ele diminua o ritmo atual.

"Ele gosta muito do que faz e se esforça todos os dias catando esse material, mas a gente acha que ele deveria dar mais atenção à saúde e não fazer tanto esforço. Por outro lado, ele se renova a cada domingo que entregamos as marmitas", diz a recepcionista Glaucia Regina Comitre Quinarelli, 40, filha de José.

O domingo (17) será o único do ano em que seu José não irá servir as refeições, que seguem normalmente durante o período de festas.

"Vou até Aparecida [179 km de SP] agradecer a Nossa Senhora por conseguir realizar esse trabalho com saúde e sem parar."

É a marmita oferecida por seu José que provê, há três anos, o almoço de Valquíria França Volpato, 46.

"Antes de me tornar moradora de rua, trabalhei com assistência social ajudando crianças, mas muita coisa aconteceu, perdi minha casa, meus filhos e acabei parando na rua. Sei da importância de ajudar alguém", diz.

FUTURO

São dezenas de panelas para dar conta dos 25 quilos de arroz, seis quilos de feijão e oito quilos de maionese. Mesmo com boa parte da casa ocupada pela logística da produção das marmitas, seu José pensa em ampliar o espaço dedicado ao próximo.

"Minha mulher quer muito fazer, no quintal, uma área de convivência, de descanso para os voluntários, mas eu gostaria mesmo de fazer banheiros e chuveiros para que os amiguinhos da rua pudessem se lavar, ter onde se cuidar, ter mais dignidade."

Ele não tem planos de trocar a Kombi, embora relate que seus maiores aborrecimentos na vida atualmente venham dos constantes reparos que precisa fazer no veículo, ornamentado com imagens de santo e um crucifixo.

"Escuto muito das pessoas que já não necessito fazer tanto pelo próximo, para eu parar, para eu descansar, viajar, curtir a vida de aposentado, mas há uma voz dentro de mim que fica dizendo: 'Faça por eles'."

Além da ação da doação de comida, seu José faz visitas e ajuda asilos, creches e comunidades carentes.

"Quando dou uma marmitinha para um irmãozinho e ele retribui com um gesto ou um olhar de gratidão, para mim, não tem preço."


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