Folha de S. Paulo


Erguida em 1938, vila modernista nos Jardins pode agora desaparecer de vez

A ousadia arquitetônica das 17 casas projetadas por Flávio de Carvalho (1899-1973) em sua "vila modernista" nos Jardins fez com que o artista –escritor, pintor, cenógrafo e pioneiro da performance– lançasse à época um manual de como habitá-las.

"Aconselha-se o uso de móveis que ocupem pouco espaço, pois são mais estéticos, confortáveis e higiênicos"; "o aro em torno do tapa-sol circular do solário serve para amarrar cortinas coloridas de lona (...) pode também ser usado para pendurar gaiolas com pássaros", dizia.

Inaugurada em 1938, a vila hoje corre risco de ser extinta.

No final de outubro, o Conselho Municipal de Patrimônio (Conpresp) optou pelo arquivamento de processo de tombamento que se arrastava desde 2004. Por isso, agora as casas terão o destino determinado unicamente pelos proprietários, e podem –como não é raro em São Paulo– parar nas mãos de empresas interessadas em construir empreendimentos nessa valorizada região da cidade.

O tombamento vinha sendo discutido havia 13 anos, mas assim que o processo foi aberto as casas passaram a ser protegidas de intervenções radicais. A votação no órgão de patrimônio, composto por nove titulares, cada um representando uma entidade, como OAB e Secretaria de Cultura, foi unânime.

A posição dos conselheiros contradisse um parecer elaborado pelo DPH (Departamento do Patrimônio Histórico), órgão responsável por alimentar tecnicamente o Conpresp.

Onde Fica - Vila Modernista - Jardins

EXEMPLARES

Pesquisadora renomada da arquitetura modernista, Dalva Elias Thomaz, do DPH, debruçou-se sobre a vila nos últimos anos e recomendou que o conjunto fosse tombado e que elementos das casas fossem restaurados.

"São exemplares raríssimos do modernismo. Foi um projeto muito inovador para a época e que, mais que modernista, é moderno, ou seja, tem algo a apresentar para as gerações que se sucedem", explica Dalva Thomaz.

"É como se estivéssemos abrindo mão de qualidades da cidade dia após dia. Daqui a pouco, abriremos mão do 'Banespão', do viaduto do Chá. São valores que estão presentes na cultura de São Paulo e dos quais a gente vai dispondo. São sínteses históricas. O que sobra depois?", continua.

As casas foram construídas por Carvalho para serem alugadas como moradia. Por breve período, a escritora Patricia Galvão, a "Pagu"–componente da célebre turma de Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, entre outros– viveu na pequena comunidade.

Atualmente, todas as casas abrigam espaços comerciais –cafés, galeria, escritórios.

Mesmo que algumas delas estejam bastante modificadas e não pareçam ser muito mais que uma loja de tintas, outras ainda revelam traços do vanguardismo do autor, cujas ideias dialogavam com referências europeias como o futurismo italiano, a Bauhaus e as casas parisienses do arquiteto Robert Mallet-Stevens.

SOLÁRIOS

Na casa de número 1.052 da alameda Ministro Rocha Azevedo, a mais preservada, o volume arredondado que se projeta da fachada, o pilar solitário e o solário com tapa-sol (espécie de guarda-sol fixo) ainda surpreendem.

O interior dela, onde hoje funciona um café, conta com itens preservados e restaurados, como os ladrilhos coloridos, a escadaria, e parte da divisão original dos cômodos.

Pequenas para os padrões da época, com 100 m², as casas deveriam servir de lar para o novo cidadão, "o homem nu, o homem do futuro, sem deus, sem propriedade e sem matrimônio", como escrevera Carvalho em 1930.

As estruturas das casas, abertas para a rua por meio de janelas e terraços, expressam características do que o artista via como o sujeito do novo século, apartado da dinâmica familiar e imerso na vida coletiva por meio do trabalho.

Nos fundos das casas persiste como testamento da visão de mundo de Carvalho uma pequena via interna que serviria de espaço de convivência dos ocupantes.

Atualmente, a ruazinha é disputada por carros atrás de vagas –donos e locatários discutem a possibilidade de proibir veículos e tentam retomar a vocação do local por meio de festas e feiras que geram recursos para reformas.

Reprodução/Luiz Carlos Daher
RG XMIT: 495001_0.tif Croqui mostra vila modernista projetada pelo artista plástico Flávio de Carvalho, em 1938. A ilustração faz parte do livro
Croqui mostra vila modernista projetada pelo artista plástico Flávio de Carvalho, em 1938

DESCARACTERIZADA

O arquivamento tem como base argumento de proprietários segundo o qual as casas já foram descaracterizadas demais para serem tombadas.

"Não sei porque estão chorando por um patrimônio que não existe", diz Sueli Schiffer, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e dona de uma das casas. "Se não existe patrimônio, não há o que ser preservado."

O processo de tombamento vinha dificultando a vida dos locatários, já que demandava autorização da prefeitura para modificações diversas, como a instalação de ar-condicionado, por exemplo.

Em avaliação apresentada por Sueli ao Conpresp, Silvio Zanchetti, professor da Universidade Federal de Pernambuco e especialista em patrimônio histórico, analisa que a vila não corresponde a critérios de "significância", "integridade" e "autenticidade" para ser tombada.

"Está totalmente descaracterizada (...) A destruição foi prevalecendo até chegar ao ponto de hoje. Não se pode tombar algo que não existe mais", diz Cyro Laurenza, presidente do Conpresp.

"A própria casa em que ali morava o Flávio de Carvalho deixou de existir e hoje é um prédio. Ele mesmo tirou toda a originalidade do que havia construído. É uma pena que tenha se perdido", conclui.

Até agora, não apareceram propostas para comprar casas. Para Sueli Schiffer, mesmo que para ela não tenham mais valor enquanto legado, as casas sobreviverão pelo desinteresse em vendê-las agora. "Vamos fazer uma conta: quanto é o m² [nos Jardins]? R$ 20 mil? A pessoa [que vender] vai ganhar quanto? R$ 2 milhões, no máximo? Com esse dinheiro não se compra nada que dê um aluguel que se recebe [na vila] hoje em dia."


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