Folha de S. Paulo


'Loucos por Bento' tentam dar vida a vila destruída por lama de barragem

Da varanda de uma das casas que restaram em pé na parte alta de Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana (MG) destruído pela lama da mineradora Samarco, uma caixa de som toca o acústico de Paulo Ricardo.

É tarde de sábado. Lá dentro, a funcionária pública Maria das Graças Quintão, 60, serve uma galinhada. Em frente à porta, o comerciante Sandro Sobreira, 42, solta rojões.

Além de nove pessoas na casa, não há mais ninguém nos arredores, a não ser seguranças contratados pela mineradora, que controlam os acessos ao que sobrou do vilarejo destruído.

Os fogos de artifício são para comemorar a possibilidade retornar ao local em que viveram até a tragédia que matou 19 pessoas -cinco dentro de Bento Rodrigues.

O que os une é o trauma de terem perdido amigos, residências, objetos pessoais e criação de animais em meio aos 40 bilhões de litros de lama que vazaram no dia 5 de novembro de 2015 da barragem de Fundão, operada pela Samarco, cujas donas são a Vale e a BHP Billiton.

Desde o final do ano passado, eles passaram a retornar ao local destruído todo fim de semana. Fazem comida, bebem, batem papo, relembram a tragédia e, contrariando a vontade da mineradora, dormem no palco da destruição.

"A gente é a pedra no sapato da Samarco", afirma o motorista Cristiano José Sales, 35. Ele aumenta o volume do aparelho de som, ligado a uma bateria, já que não há energia em Bento.

Está tocando um cover de "London, London", música de Caetano Veloso, interpretada pelo vocalista do RPM. "Eita, dancei demais isso lá no Bento!", exclama Cristiano, lembrando seu passado no povoado, antes da destruição causada pela lama.

De sua casa, ele só conseguiu salvar uma camisa do Cruzeiro, seu time do coração, toda suja dos rejeitos que vazaram da barragem há quase dois anos. A turma que reocupa o povoado se intitula "Loucos por Bento Rodrigues" e tem cerca de 30 pessoas, mas o número é variável.

Medo e depressão marcam moradores de Mariana dois anos após tragédia

A reportagem da Folha esteve numa das casas em que eles dormem, da dona de casa Terezinha Quintão, 51, que apesar de intacta foi saqueada após o rompimento.

De lá roubaram até o batente da porta. Os Loucos reformaram tudo."Dissemos: olha Terezinha, aprendemos com o Pimentel. Vamos desapropriar sua casa", afirma Marcos Muniz, 52, que é ex-funcionário da Samarco.
Assim como outros moradores do povoado, ele teve os seus terrenos em Bento Rodrigues desapropriados por decreto do governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), para a construção de um dique de contenção da lama.

Na Semana Santa deste ano, eles queimaram no vilarejo um boneco de Judas vestido com um uniforme da Samarco que Muniz guardava em sua casa.

A iniciativa causou revolta de moradores da sede de Mariana, que fica a 23 km de Bento. O município depende financeiramente da empresa, cujas atividades de mineração estão paralisadas.

Mas os Loucos pretendem queimar outro Judas no ano que vem. "O boneco representava a empresa, e não os funcionários. A culpa do rompimento é da Samarco, e não nossa", diz a auxiliar odontológica Simaria Quintão, 43.

RETORNO

Os ex-moradores começaram a voltar a Bento pouco antes do primeiro ano do rompimento. Em setembro de 2016, celebraram a festa de Nossa Senhora das Mercês.

Depois, puseram na cabeça que iam dormir no lugar, apesar de a visita estar restrita às quartas e finais de semana, das 8h às 18h, definida por um decreto municipal. "Criamos um grupo de Whatsapp e intitulamos 'Loucos'. Foi assim que começou", explica a auxiliar odontológica Mônica Silva, 32.

Numa sexta-feira, dia em que a visita é proibida, a Polícia Militar apareceu no local, a pedido da segurança, para registrar boletim de ocorrência por descumprimento de ordem judicial. Mônica se prontificou a ser notificada por eles.

Ela conta que disse ao policial militar: "Já te adianto uma coisa: vocês vão fazer muito boletim de ocorrência em nome da gente, porque a gente não vai deixar de vir". A Samarco afirma que cumpre o decreto.

Chamada depois da lama

FESTA

A tarde cai. Sandro começa a ajeitar uma lâmpada na varanda, Cristiano acende uma churrasqueira improvisada. Com a bateria, conseguem iluminar o local, pôr o som para tocar e até mesmo ligar uma televisão. Quando fazem uma festa com música ao vivo, o que já aconteceu, têm de levar um gerador de eletricidade.

Celular não pega por ali. Para usar o aparelho, eles vão até a parte baixa de Bento, destruída, onde há sinal. O grupo passa a relembrar o momento em que souberam do rompimento e os dias posteriores, sob temor de que familiares estivessem entre as vítimas. Também recordam os mortos.

"O Tiaguinho vivia muito próximo da gente", lembra Simaria sobre Tiago Damasceno, 7, um dos mortos. "Perguntávamos se ele era Cruzeiro ou Atlético e ele dizia: 'Sou Curíntia'", relembra.

Marcos Muniz fala de seu tempo de Samarco. "Eu tenho até uma foto com o Ricardo Vescovi", diz, sobre o ex-presidente da companhia, que é réu por homicídio na ação sobre o caso e nega a acusação.

O novo Bento Rodrigues, que será reconstruído em outro local, tem previsão para estar pronto em março de 2019, mas o terreno ainda não foi regularizado.

Os Loucos prometem não esquecer o velho Bento -que faz parte de suas memórias e é o marco da maior tragédia ambiental ocorrida no Brasil- mesmo com a construção do novo Bento.

"A gente não vai deixar isso aqui virar uma barragem, para acabar com a nossa história. Vamos lutar para ser um museu a céu aberto", afirma Sandro. "Mas se a gente puder continuar vindo para cá nos fins de semana, já é alguma coisa."

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