Folha de S. Paulo


Não é razoável produzir comida e jogar no lixo, diz 'mãe' de farinha de Doria

Marcelo Justo/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 04-10-2010, 13h00: Retrato de Rosana Perrotti, criadora da Plataforma Sinergia, rede de inteligencia social e incubadora de negocios sustentáveis, na sede da Plataforma, no Itaim. (Foto: Marcelo Justo/Folhapress, SUPLEMENTOS) ***EMPREENDEDOR SOCIAL***
Rosana Perrotti, fundadora da Plataforma Sinergia, empresa que criou o granulado alimentar farinata

Fundadora da empresa que criou a farinata e o granulado alimentar que foram alvo de polêmica em São Paulo nas últimas semanas, a administradora Rosana Perrotti, 52, da Plataforma Sinergia, afirmou à Folha que tem estoque do produto –feito a partir de alimentos perto da data de vencimento– para iniciar a distribuição.

No entanto, segundo ela, as empresas envolvidas no projeto não podem ser reveladas por força de um "acordo de confidencialidade".

Na última quarta (18), o prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), anunciou que distribuiria a farinha nas escolas municipais complementar a merenda. Após ser criticado por técnicos da própria administração e nutricionistas, o tucano voltou atrás.

Rosana prestou serviços à multinacional da área de alimentos Mead Johnson até setembro. Em entrevista, ela disse que se desligou da companhia após a sanção da lei que cria a política de combate à fome, no último dia 8.

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Folha - Quando e onde surgiu a ideia de fazer esse produto?

Rosana Perrotti - Meus avós fugiram da fome no Nordeste. Aqui em São Paulo não foi muito diferente. Fui emancipada e comecei a trabalhar aos 12 anos já na indústria de alimentos. Tudo o que eu queria era pegar a sobra da produção e levar para casa, algumas vezes eu fazia isso. Depois, fui trabalhar na Kellogg's. Era uma festa porque eu levava Sucrilhos para casa. Fiz faculdades e carreira internacional nas indústrias de alimento e farmacêutica.

Como surgiu a farinata?

Há dez anos, eu trabalhava numa indústria na Holanda na área de nutrição e participei de pesquisas e desenvolvimento de produtos. Lá fora há mais visibilidade para responsabilidade social e ambiental. Essa colaboração minha aqui parece loucura para todo mundo. Lá fora, loucura é jogar alimento fora.

A patente do produto é sua?

Desenvolvi a patente e estou disponibilizando para indústrias que querem processar os alimentos desde que eles sejam de qualidade e 100% doados para o combate à fome. Fui visitar as pessoas no Haiti, temos correspondentes na África. Não sei o que acontece com o brasileiro. Não está vendo fome no mundo?

Jorge Araujo/Folhapress
São Paulo SP Brasil 18 10 2017.Na Curia Metropolitana de São Paulo no bairro de Higianopolis o prefeito João Doria e cardeal Dom Odilo Scherer falaram no contexto da polêmica do granulado alimentício PODER. Jorge Araujo Folhapress 703 ORG XMIT: XXX
O prefeito João Doria e o cardeal Dom Odilo Scherer em evento sobre o granulado alimentício

A farinata foi desenvolvida por você, por uma equipe? Não ficou muito claro.

Foram pesquisas dentro das possibilidades que existiam, que eu conhecia, e daí fui procurando outras pessoas. Essa patente envolve 20 tecnologias diferentes que existem na indústria de alimentos. A nossa tecnologia processa qualquer alimento.

Que tipo de alimento?

Pegamos o alimento bom, que a gente testa antes. Se ele for adequado para o consumo humano, nutritivo, a gente pode processar, ele vai virar um pó no final.

Mas quais, por exemplo?

Batata, arroz, feijão, macarrão, carne e ovo. Já fizemos teste com todo tipo.

A divulgação do prefeito atrapalhou os planos da senhora?

Não. O prefeito tem o mérito de ser o primeiro de toda a América que põe o ser humano no primeiro lugar para o consumo de alimento bom.

O que houve de errado?

Quando é inovação, ou você explica tudo ou é melhor não falar nada. A gente previa fazer workshop, mas a vida tem um timing diferente do que a gente gostaria.

Doria falou em colocar o produto na merenda, medida contestada por técnicos da Secretaria de Educação. Houve um atropelo, não?

Concordo que é necessário fazer um levantamento da carência nutricional e, se necessário, a gente entrar com a farinata. O pessoal fala que não tem fome em creche. Eu, que vou a locais onde as pessoas estão me pedindo esse alimento, tenho outra percepção. Concordo que tem que ter alimentação fresca, mas podemos adicionar vitaminas.

A senhora sabe quantas calorias tem uma colher de sopa de farinata? E do granulado?

Uma colher de sopa da farinata é extremamente concentrada. Esse biscoito [granulado apresentado em vídeo por Doria] foi feito especificamente para uma creche de Salvador, e nós fizemos um teste de um biscoito que lembrasse pipoca, mas que não fosse saturada em sal, gordura e açúcar. Pode colocar no feijão, sopas, shake. A bolinha tem carboidrato, proteína e fibras.

Tem estoque para isso?

Tenho, mas não libero até identificar essa carência.

Onde está o estoque?

Dentro da própria indústria. Por exemplo, uma indústria de chocolate, ela tem 50 toneladas de um chocolate que não vai vender e me pergunta: Você quer fazer farinata de chocolate? Digo: claro. Tenho acordo com as indústrias tanto para fornecer alimento quanto para produzir.

Quais indústrias?

Não posso dizer. Tenho acordo de confidencialidade. Antes eu já não podia porque não tinha lei, olha que ironia. Agora tem lei, a mídia está batendo em cima e ninguém quer falar que está dentro.

E essas empresas vão doar?

Vão. Hoje, para descartar o alimento, elas têm que levar a um lugar distante e o custo da incineração é alto. Ela elabora o beneficiamento, doa o alimento, reduz o consumo e leva para quem passa fome.

Seu perfil no LinkedIn diz que a senhora trabalha para a empresa de alimentos Mead Johnson Nutrition.

Não estou mais lá, faz duas semanas que saí para focar no combate à fome. Mas isso é importante por quê? É uma empresa de nutrição [a MeadJohnson diz que ela prestou serviços por quatro meses na área financeira, mas que não tem relação com o projeto]. Fui consultora de empresas durante mais de dez anos.

Enquanto a senhora desenvolvia a farinata, continuava trabalhando nas empresas?

Não. Não estava trabalhando direto na produção [da farinata] porque estava dependendo de lei. Agora que sancionou, estou ativando o contato que eu tinha para retomar a produção. Recentemente, recebi um lote grande de uma grande indústria.

Não teme que esse trabalho possa ser associado a eventual conflito de interesses?

Que tipo de conflitos? Se há um alimento bom que está represado na empresa e a prefeitura tem demanda para combater a fome, isso é bom.

Empresas têm interesse em baratear custos. Daí usam esse modelo que as beneficia, não?

Se as empresas baratearem seus produtos é ótimo. Se elas acharem que é melhor elas doarem para quem tem fome é muito bom. O que não é razoável é ter tanta produção para ir para o lixo. Aqui as pessoas dizem que não há fome, aí jogam tudo fora. Se não tem fome em São Paulo, a gente leva para o Haiti, para a Síria, para a Venezuela.

Qual é o tamanho do estoque?

Não sei te falar exatamente porque estou recebendo produtos. Tenho 60 palets de alimentos bons que devem dar uma 40 toneladas, não sei dizer exatamente.

O que a senhora achou das críticas dos nutricionistas?

Liguei para as nutricionistas, só achei estranho elas criticarem pela internet. Se entidade de cunho científico começa a usar de ideologia e partidarismo, como fica?

A médica Zilda Arns criou a multimistura, que foi usada no combate à fome nos anos 1980. A medida é desaconselhada hoje.

Não tem nada a ver com o que a gente faz. Pego um alimento bom e o transformo num mesmo alimento, estendendo a vida útil. Ela fazia uma mistura que era um alimento para quem não tinha, mas era numa escala familiar.

Foi a Igreja Católica que apresentou o projeto ao Doria?

Sim. Dom Odilo [Scherer, arcebispo de SP] participa conosco desde 2013, quando participou do projeto federal que prevê função social do alimento. Mas apresentamos a ele e a 40 religiões que têm trabalho de combate à fome.

Nacho Doce/Reuters
A child holds a sign reading
Pais e crianças protestam contra inclusão de farinata na merenda de escolas de São Paulo

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RAIO X

Nome
Rosana Perrotti

Idade
52

Formação
Administradora de empresas

Atividade
Fundadora da Plataforma Sinergia, organização que anunciou a farinata, feita a partir de alimentos perto do vencimento, contra a fome

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Entenda a farinata

O que é a farinata?
Uma espécie de farinha feita a partir de vários alimentos (frutas e legumes, por exemplo) que estão perto da validade e seriam incinerados por produtores e supermercados. O objetivo é combater a desnutrição

Como a polêmica sobre o produto começou?
No começo do mês, Doria mostrou o granulado alimentar, feito à base da farinata, como exemplo durante um evento para sancionar lei que cria um programa de erradicação da fome e combate ao desperdício de alimentos na cidade. Na ocasião, chamou o produto de "abençoado"

A farinata faz parte desse programa?
Apenas indiretamente. O projeto de lei menciona a implantação de "unidades de processamento de alimentos" em regiões com destinação inadequada de alimentos, mas não trata especificamente dela

A farinata fará parte da merenda escolar, como Doria anunciou?
Não, o prefeito voltou atrás após mal estar com a Secretaria de Educação, que não foi consultada antes do anúncio. A equipe de Doria também avaliou que dificilmente o produto seria aprovado pela Codae –braço da pasta de Educação responsável pela definição da merenda

E na área de assistência social? Ela será usada?
Ainda não se sabe. O prefeito estuda abandonar a adoção da farinata também no combate à fome. Isso depois do desgaste e das críticas à falta de clareza acerca de sua qualidade nutricional, condições de produção e aquisição por parte do município


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