Folha de S. Paulo


Estudo levanta debate sobre criação de salas para consumo de crack no Brasil

"Faz oito anos que vivo, assim, sob sol e sob chuva. É claro que eu preferiria usar minha droga num lugar mais adequado", diz Isaías, 60, no meio do "fluxo" –cena aberta de consumo de crack na região central da capital paulista, em que o uso de drogas se mistura a seu comércio, à prostituição e ao amontoado caótico dos pertences de pessoas em situação de rua.

"Chega a prefeitura para lavar a rua, a gente sai. Tem operação policial, a gente corre. E depois volta", completa ele cercado por centenas de pessoas entre as quais cintilam faíscas que transformam pedra em fumaça.

Uma jovem, sem se identificar, entra na conversa: "Eu não ia usar crack num lugar fechado. Quando eu fumo, o lugar encolhe, as paredes me espremem. Se não vejo o céu, entro em pânico. Dá pra ver o céu de lá?", pergunta.

"Lá", neste caso, é um lugar que por ora não existe no Brasil. São as chamadas salas de consumo de drogas. Criadas nos anos 1980 na Europa, são espaços limpos e protegidos que permitem o uso de substâncias ilícitas, adquiridas fora dali, sem questionamentos e sob a supervisão de enfermeiros ou funcionários qualificados.

A controvérsia inerente ao uso de um equipamento de acesso público para o consumo de substâncias ilegais, no entanto, não tem impedido a proliferação deste tipo de equipamento. Hoje existem 98 salas de consumo de drogas em dez países, entre eles Austrália, Alemanha, Canadá, Espanha, França e Suíça.

Algumas salas têm cara de hospital, outras, de albergue, e existem ainda aquelas itinerantes, que circulam pelas ruas de Copenhague, na Dinamarca, para chegar mais perto de seu público-alvo.

PERTURBAÇÃO

Adotadas como estratégia de redução dos danos individuais e sociais provocados pelo consumo problemático de drogas por populações vulneráveis, as salas também diminuem a perturbação da ordem pública típica das cenas de uso a céu aberto.

"Este desafio urbano existe há muito tempo e em muitos lugares", explica Luiz Guilherme Paiva, ex-secretário de política de drogas da Senad (Secretaria Nacional de Drogas) e coautor de estudo inédito que levanta o debate sobre a eficácia e viabilidade deste equipamento no Brasil.

Encomendado pelo Instituto Igarapé, o estudo compila pesquisas internacionais que apontam para alguns resultados comuns, como a promoção de um consumo seguro entre grupos socialmente mais vulneráveis e uma relação positiva entre a frequência dos usuários no equipamento e a probabilidade de ingresso em programas de tratamento.

"Além disso, não foi detectado um aumento no consumo de drogas na população dessas cidades nem o aumento de crimes ou de tráfico nas redondezas das salas", explica Paiva. "Pelo contrário, a perturbação da ordem pública foi reduzida na maior parte dos casos."

Segundo ele, foi a questão segurança e da limpeza dos espaços públicos que levou a Holanda a adotar as salas. "Com isso, a iniciativa obteve o apoio de setores mais conservadores da sociedade."

HEROÍNA x CRACK

Criadas com foco nos usuários de drogas injetáveis há 30 anos, as salas de consumo de drogas respondiam à necessidade de fornecer insumos descartáveis para combater a epidemia de HIV/Aids e supervisionar o uso para evitar overdoses. Aos poucos, esses espaços passaram a conectar usuários problemáticos de drogas a uma rede de políticas de saúde, tratamento de dependência, assistência social e geração de renda.

Mais recentemente, mudanças nos padrões de consumo de drogas fizeram com que ao menos 31 salas tenham implementado instalações para o uso de substâncias fumáveis, como o crack.

Dados sobre o consumo de crack no Brasil apontam que 70% dos usuários compartilham apetrechos. A incidência de HIV entre eles é oito vezes maior que na população em geral. Além disso, 40% deles estão em situação de rua.

O psiquiatra Arthur Guerra, coordenador do programa de combate ao crack da gestão João Doria (PSDB), que já visitou uma dessas salas em Vancouver (Canadá), avalia que a sociedade deve debater a conveniência de espaços controlados para o consumo de drogas. "Não defendo o uso de drogas. Sou pela abstinência e pela redução de danos. Mas, desde que haja base legal, poderíamos levantar possibilidades para trazer mais dignidade para a vida daqueles que estão na cracolândia."

Guerra lembra que já citou as salas de consumo anteriormente, mas ninguém da sociedade civil se manifestou publicamente. "Recebi tapinhas nas costas e a sugestão, em tom de brincadeira, de que tomasse cuidado para não ser acusado de apologia ao uso de drogas."

Descaminhos da cracolândia

TOLERÂNCIA

De acordo com Paiva, os desafios político e jurídico são os maiores na implementação de um equipamento deste tipo por aqui.

Os clientes das salas de uso seguro, ao portar drogas ilícitas para consumo próprio, poderiam ser enquadrados no artigo 28 da atual Lei de Drogas (11.343/06), que estabelece como crime "adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo" tais substâncias.

A constitucionalidade deste artigo está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal. "Havendo autorização do porte, seja pela legislação ou decisão do STF, há possibilidade de se criar esses equipamentos", avalia Raquel Tamassia Marques, conselheira da OAB-SP.

Boa parte das salas de consumo atuais foram instaladas antes de serem incluídas nas legislações nacionais. Para tanto, foram precedidas de acordo entre autoridades envolvidas para que o consumo controlado fosse tolerado até que os primeiros resultados fossem obtidos.

"Se algo assim for aplicado antes de uma legislação, certamente vai suscitar apuração de responsabilidade", diz Mário Sérgio Sobrinho, procurador de Justiça do Estado de São Paulo, que declara ser contrário a este tipo de equipamento. "A sala estaria indiretamente estimulando uma prática vedada pela lei." Nos dez países onde as salas funcionam, o comércio de drogas segue proibido.

No fluxo, em São Paulo, um homem saiu debaixo de uma barraca de lona para interpelar esta repórter sobre o que fazia ali. Explicado o assunto abordado com os usuários –o interesse ou a falta dele por uma sala de consumo na região–, a reportagem foi gentilmente convidada a se retirar.


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