Folha de S. Paulo


Vigia de creche teve vida migrante, fez escultura e oscilou após a morte do pai

Antes de atear fogo na creche e matar nove crianças, uma professora e a si próprio, Damião Soares dos Santos, 50, era conhecido na mineira Janaúba como "Dão do Picolé".

De dia, vendia o doce gelado pelas ruas de chão batido. De noite, trabalhava como vigia noturno da creche Criança Inocente, que ele incendiou na última quinta-feira (5).

Vizinhos e conhecidos lembram dele como reservado e de poucos amigos. A família o retrata como bondoso e inteligente. Os dois lados concordam na incredulidade: ninguém esperava que o calmo Damião fosse capaz de cometer um atentado do tipo.

"Na hora que minha sobrinha disse 'o tio Dão pôs fogo na creche', eu não acreditei. Estou assustada até hoje. Ele era a pessoa mais calma que eu conhecia", diz Maria Alexandrina, 59, irmã dele.

"Moço, tá saindo um enterrinho ali agora. Você não sabe qual é a dor da gente. Não vê como é grande. Porque foi um parente nosso que fez isso. Você não consegue imaginar que aquele homem bom, que conviveu com a gente, fez isso, não. É doído demais", diz uma sobrinha Ana (nome fictício), que pede para não ser identificada.

Entre as muitas lembranças que guarda do tio, destaca as visitas que fazia no tempo em que ele morou fora, entre Belo Horizonte e São Paulo. "Uma vez ele veio trazendo um teclado para a minha irmã, que é afilhada dele. Sempre trazia alguma coisa. Sentava aqui e tocava para nós. Chamava os sobrinhos de 'bola murcha', apelido carinhoso. Tinha um lote com plantações de fruta, goiaba e tudo, que a gente fazia a festa", diz.

Na certidão de nascimento consta que Damião nasceu em Porteirinha, cidade vizinha a Janaúba. "Hoje o bebê nasce e já registra. Mas na época não era assim, não", conta Maria Alexandrina, que conta que os irmãos (sete meninas e quatro meninos) nasceram em Catuni, distrito rural de Francisco Sá, a 85 km da cidade da tragédia, também no extremo norte de MG.

Ele dividiu o ventre da mãe com Cosme, não idêntico, o que rendeu a eles os nomes dos santos católicos também gêmeos Cosme e Damião –o outro vive na capital mineira.

Habilidoso, o vigia fazia esculturas de animais em gesso e fabricava em casa os picolés que vendia. Por isso, guardava galões de álcool.

O líquido ajuda a baixar a temperatura e acelera a manufatura do doce gelado. Suspeita-se que ele tenha usado o combustível para causar o incêndio na creche.

"Um homem que aprende sozinho a fazer picolé, a mexer com gesso, a ser eletricista, era concursado da prefeitura... Só pode ser muito inteligente", diz outra irmã.

"Tudo dele era ler, ler, ler", lembra Maria Alexandrina.

"Era muito estudioso. Uma vez nós falamos: 'O Dão vai enlouquecer'. Porque ele só ficava com a Bíblia na mão."

Reprodução/Facebook
O segurança Damião Soares dos Santos, 50, principal suspeito de incêndio em creche em Janauba, MG
O segurança Damião Soares dos Santos, 50, que ateou incêndio em creche em Janaúba, MG

ENTERRO

Damião foi enterrado pelo coveiro Miguel Fernandes, 51. Nenhum familiar foi à cerimônia. "Eu não posso demonstrar raiva, porque tenho o lado profissional. Mas abalou todo mundo", diz. Antes da tragédia, a única vez que Miguel abriu tantas covas foi "há uns anos, quando morreram seis pessoas no mesmo dia, mas tudo de morte natural." O caixão do vigia foi colocado sobre o do pai, ali enterrado três anos antes pelo mesmo coveiro.

Com medo de represálias, a família não foi ao enterro. "Estávamos ali na casa da minha vó, e falaram 'num velório que vão entrar em casa'. Como que a gente fica na casa? É aterrorizante", desabafa a sobrinha.

"As pessoas de longe vão querer crucificar a gente, vão dizer que 'a irmã tá defendendo um monstro, a sobrinha tá defendendo um monstro'. Só que não é isso. Dói, moço, é muito sofrimento. A cada hora chega uma criancinha... Eu trabalho com criança", conta.

"Conhecíamos todo mundo", diz a irmã. "A mãe dessa menininha que morreu, eu costurava para ela", afirma, sobre a menina Talita, que morreu na manhã de sábado (7). "São pessoas humildes, também. Por isso o sofrimento é maior. Minha nora, ontem, estava no velório do primo dela. Enquanto isso, o meu filho, casado com ela, estava pegando as coisas do tio. É tanta dor, gente, tanta dor dos dois lados."

Dos quase 50 feridos, 22 seguem internados, sendo três deles em estado grave por causa das queimaduras.

LOUCURA

Em 2014, Damião procurou a Promotoria em Janaúba para denunciar a própria mãe, que, segundo ele, tentava envenená-lo pela comida.

Sem nada que indicasse verdade na acusação, ele foi encaminhado ao Caps (Centro de Atenção Psicossocial), mas não há nenhum registro de que tenha se tratado.

Então saiu da casa da mãe e foi morar sozinho, em outro bairro. "Era uma pessoa simples e muito na dele. Não recebia gente em casa, passava na rua e não cumprimentava. Era quieto", diz o aposentado Weliton Vieira, 70, vizinho do vigia.

Há três anos, abalou-se com a morte do pai, Patrocino, após um AVC. "Ele e o pai passavam o dia juntos. Todo dia, pegavam uma cadeira, sentavam na rua e conversavam, a tarde toda", diz a irmã.

Desde então, a família passou a vê-lo com menos frequência. "Via vendendo o picolé dele na rua, dizia 'bença, tio Dão', ele respondia, dizia que estava bem, a gente acreditava", conta a sobrinha.

CASA DA MÃE

TRAGÉDIA EM JANAÚBACidade rural onde vigia colocou fogo em crianças fica a 557 km de Belo Horizonte

Na terça (3), dois dias antes da tragédia, ele apareceu na casa da mãe, dona Joaquina, 86, que segue abatida e não entende "por que Dão fez isso". "Veio e falou que estava doente. No dia, vomitou muito. Ele tinha úlcera, acho que foi algum nervoso que passou", afirma a irmã.

À sobrinha disse que daria um presente. "Minha morte, alguém colocou veneno na minha comida", explicou. "Aí que eu conheci que ele não estava bem. Nesse mesmo dia, coloquei no grupo de WhatsApp da família que ele não estava bem, e começamos a orar, fizemos corrente."

Dormiu duas noites na casa da mãe. Na quinta (5), acordou cedo, ainda passando mal. "Quando ele estava no banheiro vomitando, meu irmão entrou aqui e falou: 'Vamos lá, que às vezes só com você ele aceita ir ao hospital, porque eu tô falando e ele não tá atendendo'", diz a irmã. "Fui e minha mãe falou: 'Dão acabou de sair. Foi fazer umas coisas, mas mais tarde ele volta'." Ele não voltou.


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