Folha de S. Paulo


Horror em creche travou policial; leia o passo a passo do incêndio criminoso

Damião Soares dos Santos, 50, foi trabalhar na segunda-feira (2), mas faltou na quarta-feira (4). Ele trabalhava num regime de 12 horas seguidas e folgava outras 36 horas.

Pela falta, recebeu um telefonema da diretora da creche onde atuava como vigia noturno, em Janaúba (a 554 km de Belo Horizonte), no extremo norte de Minas Gerais. Ela questionou a ausência dele.

Ao se desculpar, disse que estava doente e que, na quinta (5), levaria um atestado médico para justificar a falta. Mas esse suposto documento nunca foi entregue à diretora.

Naquele dia, Damião ateou fogo na creche e matou oito crianças e uma professora, além de si mesmo. O atentado deixou outros 41 feridos, muitos em estado grave.

O vigia era funcionário da prefeitura, que mantém a creche Criança Inocente desde 2008. Naquela semana, ele voltava de um período de três meses de férias acumuladas.

Na quinta, acordou cedo e foi de moto ao local, numa rua tranquila, de terra, no extremo da cidade, sob um calor que àquela hora (por volta das 9h) já se aproximava dos 30°C.

Ele estacionou a moto e bateu no portão, que fica trancado a chave. Disse à funcionária que queria falar com a diretora da creche e entrou, com uma mochila das costas.

"Uma coisa normal, porque ele convive com aqueles funcionários. Não tinha nenhum motivo para suspeita", diz o delegado Renato Nunes Henriques, que comanda as investigações do crime.

De dentro do muro, duas edificações: à esquerda, as salas onde ficam as crianças. À direita, a administração. No meio, um pátio com brinquedos. Era comemoração antecipada do Dia da Criança. Damião seguiu para a casa da direita e, ao entrar, deu de cara com as dezenas de alunos (funcionários da prefeitura falam em torno de 80, mas dizem que os registros de presença foram destruídos).

Janaúba

O vigia sorriu, cumprimentou os meninos e disse: "Eu vou dar picolé para vocês", numa referência aos doces gelados que ele fabricava em casa para vender na rua e em festas. As crianças se animaram e o abraçaram, segundo os relatos de sobreviventes.

Foi quando Damião espalhou combustível sobre eles –sem perícia, análises preliminares acreditam que seja álcool, líquido que ele armazenava em casa para auxiliar a refrigeração dos picolés. Em seguida, ele ateou fogo.

A professora Heley de Abreu Silva Batista, 43, tentou interrompê-lo e salvar as crianças, dando início a uma luta corporal. Morreram os dois.

DE FORA

Do lado de fora, Josimar Ramos, 34, que mora há seis anos na região, ouviu um estrondo e gritos –contou depois à reportagem, enquanto aguardava na fila do hospital para receber medicação.

"Eu estava conversando com o vizinho e comecei a ouvir gritos e pedido de socorro. Disse: 'Vambora!' E fomos todo mundo para lá", conta.

Encontrou o portão trancado. "Tentei e não consegui arrombar. Um vizinho acho que pegou uma cegueta [tipo de serra] e cortou. Entramos."

Josimar se molhou inteiro e amarrou camiseta encharcada na cabeça. "Me cobri com um pano de chão molhado e fui para dentro."

"Na hora não pensa em nada, só em tirar as crianças, que desespero. Puxei um, dois, não sei quantos. Puxei um pela grade da janela, que não esqueço, ele gritando: 'Ô, mainha, não puxa forte, não'."

Os que chegavam enchiam baldes e corriam para o interior da creche, até que chegou um primeiro carro da polícia.

Um PM desceu, mas ficou paralisado. Parecia em choque diante do fogo, dos gritos e dos feridos. Logo ele voltou ao normal e ajudou a buscar água e apagar o fogo.

Um dos ajudantes era Lourival Pereira da Silva, 47, que mora em frente à creche. "É um trem que não vai sair da minha cabeça tão cedo."

Na madrugada seguinte, o cenário era de completa destruição: o forro de PVC virou pó. Brinquedos, roupas, papeis: tudo cinza no chão.

"Fui dormir ontem 3h, até hoje estou imaginando aquela cena. Por que uma pessoa faz isso?", questiona Josimar.

HISTÓRICO

TRAGÉDIA EM JANAÚBACidade rural onde vigia colocou fogo em crianças fica a 557 km de Belo Horizonte

A pergunta de Josimar ainda está sem resposta. Mas há episódios que indicam em Damião um comportamento estranho. Em 2014, Damião procurou a Promotoria em Janaúba para denunciar a própria mãe, que, segundo ele, tentava envenená-lo pela comida.

Sem nada que indicasse uma verdade nessa acusação, ele foi encaminhado ao Caps (Centro de Atenção Psicossocial), mas não há registro de que tenha de fato se tratado. Rompido com a mãe, morava sozinho e não tinha filhos.

Para o delegado Henriques, o episódio indica um "transtorno persecutório", condição em que a pessoa se sente perseguida. Em rede social, queixava-se que padarias e restaurantes também tentavam envenená-lo.

Para o Ministério Público e a prefeitura, isso não significa que ele deveria ter sido afastado da creche. "Em nenhum momento ele tinha contato com as crianças. [Por ser guarda noturno], chegava após o expediente [da escola] e deixava seu serviço antes do expediente. Em nenhum momento poderíamos imaginar que ele pudesse causar uma tragédia como essa", disse o prefeito Carlos Isaildon Mendes (PSDB).

O delegado Henriques concorda. "Não estava surtado, estava em sã consciência. Era imprevisível isso. Foi um fato isolado, que aconteceu, como acontece às vezes até em outros países. Infelizmente é a mente humana. Mas não podia-se evitar esse fato."

No dia do atentado, completavam exatos três anos da morte de seu pai. Dois dias antes, ele teria dito à famílias que "daria um presente" a eles e cometeria suicídio.


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