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'Reféns' de tiroteio na Rocinha, jovens perdem vestibular e adiam sonho

Eduardo Anizelli/Folhapress
Sala vazia no Pecep; alunos ainda estão com medo de voltar às aulas nos pré-vestibulares da região
Sala vazia no Pecep; alunos ainda estão com medo de voltar às aulas nos pré-vestibulares da região

Durante o tiroteio, em uma tentativa de acalmar os filhos, a mãe de Vitória contou uma piada que fez a adolescente rir de sair lágrima. Quando a primeira caiu do canto do olho, no entanto, destravou um longo choro contido.

Aos 18 anos, Vitória tinha perdido a prova do vestibular da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), impedida de sair de casa pelo violento conflito na Rocinha, iniciado em 17 de setembro.

Além de Vitória, Gabriel, 19, e Brena, 18, são alunos da favela que não puderam realizar a prova naquele domingo –os nomes dos dois primeiros foram trocados a pedido dos estudantes, que têm medo de serem identificados.

O tiroteio começou depois das 6h. Vitória despertou com o barulho. Foi com o irmão mais novo, de 9 anos, para o quarto da mãe e do padrasto.

Os quatro ficaram deitados juntos, na mesma cama, esperando o confronto passar. Quando parecia ter acabado, começava de novo. Seguiu assim por cinco horas.

"A minha mãe fez de tudo para distrair a gente. Teve uma hora em que ela estava brincando, e eu ri tanto que caiu uma lágrima. Foi aí que comecei a chorar. Bateu aquele nervosismo. Não consegui fazer a prova, estava preocupada com a minha avó, que mora em outro lugar da favela, com medo pela minha família dentro de casa. Era uma mistura de sentimentos. Eu me sentia muito impotente", conta ela.

Em outro ponto da favela, Gabriel também estava incrédulo. Ele saía do banho, às 6h40, quando ouviu o barulho. "Parecia que o tiroteio estava dentro de casa. Dá uma sensação de total instabilidade, mas segui os preparativos. Coloquei a roupa. Tinha uma esperança que ia passar", conta o rapaz.

Na sua casa, também na Rocinha, Brena teve a mesma reação. "Pensei: vai parar. Continuei me arrumando." No dia anterior, um sábado, a adolescente saiu do pré-vestibular confiante. A aula, sobre "A Hora da Estrela", foi "excelente", diz. "Tinha lido o livro, da Clarice Lispector, e tinha gostado muito. Estava esperançosa", conta Brena, que, assim como a personagem Macabéa, migrou do Nordeste para o Rio.

Eduardo Anizelli/Folhapress
Marcos Barros, coordenador de um cursinho na favela da Rocinha, no Rio
Marcos Barros, coordenador de um cursinho na favela da Rocinha, no Rio

Naquele domingo, a esperança de Brena se esvaiu junto com as horas. "Deu 8h, 8h30, 9h, e nada de os tiros pararem. Aí caiu a ficha de que tinha perdido a prova. Comecei a chorar, porque estudar o ano inteiro e não conseguir sair por causa de um tiroteio é muito triste", diz.

Para os estudantes, o vestibular da Uerj foi uma porta que se fechou. Mesmo com grave crise financeira, a universidade é uma das melhores do país. "Era a oportunidade de entrar em uma faculdade pública, um sonho para nós", lamenta Vitória.

"Acho que nunca me senti tão confiante. Paguei R$ 120 para fazer esse vestibular. Não é pouco para mim. Fiquei indignado", reclama Gabriel.

Muitos trabalham e estudam ao mesmo tempo. São de famílias humildes e sonham em ser os primeiros, entre pais, irmãos, tios e primos, a pisar em uma universidade.

Brena sonha em fazer pedagogia. Trabalha em uma creche na Rocinha e ganha R$ 820, sem carteira assinada. Estuda de manhã em casa, trabalha à tarde e, à noite, faz aula no Pecep (Projeto de Ensino Cultural e Educação Popular), pré-vestibular comunitário localizado na Escola Parque, instituição privada próxima da Rocinha.

Já Gabriel quer fazer cinema. "Cresci vendo novelas da Globo. Me imagino naquelas festas e premiações... Meu sonho é ser diretor de novela."

A colega de turma, Vitória, escolheu arquitetura. Ela faz um curso de design de interiores no Senac pela manhã, estuda em casa de tarde e faz o pré-vestibular de noite.

CURSINHO SUSPENSO

Os vestibulandos do PVCR (Pré-Vestibular Comunitário da Rocinha) ficaram mais de uma semana sem aula devido aos confrontos da favela.

O Pecep, na Gávea, também foi afetado.

Quando os cursinhos reabriram, no fim da semana passada, muitos alunos faltaram. "De 15, vieram quatro", conta Marcos Barros, 37, coordenador do PVCR, morador da Rocinha.

O Pecep tentou retomar as atividades três dias após a prova da Uerj. "Os três diretores foram. Fizemos uma reunião com os alunos. Eles choraram, a gente também. Abalou a turma toda", conta uma das diretoras, Maitê Ramos, 24. No mesmo dia, no entanto, a aula foi interrompida por tiroteios, e o Pecep fechou mais uma vez.

A poucas semanas do Enem e da prova da PUC-Rio (que oferece bolsas para alunos de baixa renda), o cancelamento das aulas e os confrontos tiraram o foco dos vestibulandos.

"Tentei fazer provas antigas de casa e tirei dúvidas com os professores pela internet, mas foram mais de dez dias de tensão. Uma quarta-feira, fiquei no meio do fogo cruzado, tive que correr para dentro de um supermercado. Outra vez não pude ir para casa e tive que dormir na casa de uma amiga", diz Vitória.

Gabriel também ficou no meio de tiroteios. Depois do domingo, em que perdeu a prova, passou mal duas vezes. "Qualquer barulho me deixa assustado. Meu coração acelera, fico tonto."

A experiência de perder a prova deixou os jovens com uma sensação de injustiça. No mesmo dia, Vitória viu nas redes sociais uma menina comemorar a nota A na Uerj. "Poxa, estudei bastante... Se não morasse aqui, se isso não tivesse acontecido, poderia ter tirado esse A."

Brena diz que seus concorrentes no vestibular têm oportunidades desde cedo. "Eles já têm uma vantagem porque tiveram um ótimo ensino. Esse povo que não mora na favela não teve que passar o que passei, está lá na prova."

O QUE DIZ A UERJ

Os coordenadores dos cursinhos afirmam que tiveram reuniões com o reitor da Uerj, mas a universidade disse que nada poderia ser feito. No PVCR e no Pecep, ao menos 12 alunos da Rocinha não conseguiram fazer o exame.

Por meio de nota, a instituição diz que uma prova extra não está prevista no edital.

A universidade defende ainda que não havia tempo hábil ou instrumentos para realizar uma prova extra. "Lamentamos que não possamos ajudar a minimizar esse problema, ocorrido fora dos muros da universidade e dos locais de prova", disse a Uerj.

Para Gabriel, uma universidade pública, pioneira no país na implementação de cotas, deveria ter tido "outro olhar para a situação".

Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas nesses dias, os alunos dizem que estão se esforçando para retomar a rotina de estudos para as próximas provas.

Vitória, por exemplo, diz que a educação é uma prioridade e um sonho de sua mãe. "Ela teve filho muito nova. Quer que comigo seja diferente. Então vou dar meu sangue para a PUC e para o Enem."

Perguntada se gostaria de escolher um nome para a reportagem, já que o real seria omitido por segurança, ela responde: "Coloca Vitória, porque eu vou sair vitoriosa dessa".

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