Folha de S. Paulo


Conflito na Rocinha remete à ascensão e queda de traficante preso desde 2011

Reuters - 10.nov.2011
O líder do tráfico da favela da Rocinha, Antonio Bonfim Lopes, o Nem, é conduzido por policiais do batalhão de choque à delegacia, no Rio de Janeiro (RJ). O traficante foi preso após se encontrado em porta-mala de um automóvel, tentando fugir da favela da Rocinha. *** iSMS102 Antonio Bonfim Lopes (R) or
Nem ao ser preso, em novembro de 2011, no Rio

Em 1999, Antônio Francisco Bonfim Lopes, gerente de entrega de revistas à beira de completar 24 anos, subiu o morro da Rocinha, na zona sul carioca, para falar com Lulu, Luciano Barbosa da Silva, então comandante do tráfico na maior favela do Brasil.

Era seu último recurso para sanar a dívida de R$ 20 mil em que havia se afundado desde que a filha de dez meses fora diagnosticada com uma doença rara. Como garantia pelo empréstimo que pleiteava, ofereceu o que podia: trabalho e fidelidade. Voltou para casa como segurança do dono do morro.

Assim Antônio virou Nem, o mais astuto chefe do tráfico da Rocinha, que conseguiu ao mesmo tempo ser respeitado e querido pela comunidade, que o tratava como presidente, incrementar o comércio de cocaína como nunca e ainda evitar o desfecho mais trágico e comum entre aqueles que ocuparam seu posto: a morte.

Desde 2005, quando assumiu o comando da favela, Nem adotou como estratégia a corrupção policial para evitar conflitos e o patrocínio de benfeitorias na comunidade para conquistar simpatia e lealdade entre os moradores.

Segundo o jornalista britânico Misha Glenny, autor de biografia do traficante, Nem pagava propinas diárias a todos os membros de um batalhão da PM. "Ele o fazia por meio de representantes, mas monitorava tudo por telefone. Sabia que a violência era ruim para os negócios", diz.

Domingos Peixoto/Agência o Globo
Rio de Janeiro (RJ), 25/09/2017, Rocinha / Forças de Segurança - Exército reforçando a segurança na Rocinha. Na foto: soldados com máscaras. Foto: Domingos Peixoto / Agência o Globo DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM
Mascarados, soldados do Exército fazem operação na favela da Rocinha, na zona sul do Rio

Isolada geograficamente das favelas dominadas por facções rivais e imune aos confrontos com a polícia pela via do suborno, a Rocinha de Nem se tornou uma favela amigável, com índices de violência semelhantes aos dos bairros da zona sul carioca. Turistas, curiosos e clientes do asfalto aos poucos perderam o medo de circular por suas vielas. E as atividades econômicas floresceram: as lojas, as biroscas e as bocas de fumo.

Os negócios dariam um salto ainda maior quando Nem e seu parceiro Saulo de Sá Silva montaram uma refinaria de cocaína na favela.

No lugar do produto final, os matutos agora traziam pasta-base dos países vizinhos direto para a Rocinha. E cada quilo da matéria-prima rendia três quilos de cocaína. Os lucros triplicaram, e a Rocinha passou a prover 60% da cocaína consumida no Rio de Janeiro, segundo a Polícia Civil.

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Danúbia de Souza Rangel, mulher do ex-chefe do tráfico de drogas na Rocinha, Antônio Bonfim Lopes, o Nem
Danúbia Rangel, mulher do ex-chefe do tráfico de drogas na Rocinha, Antônio Bonfim Lopes, o Nem

PRIMEIRA DAMA

Na esteira da boa fase, Nem se casaria com Danúbia Rangel, viúva de dois chefes do tráfico do Complexo da Maré. O casal passaria a adotar hábitos caros, como quando contratou o rapper americano Ja Rule para um show na favela.

"Nem mudou de estilo, começou a esbanjar. Parte disso era fruto de egolatria, parte era produto da lógica romana do pão e circo: dê-lhes de comer e dê-lhes celebridades para se entreterem", conta Glenny. Danúbia e Nem se tornaram celebridades da Rocinha.

Em 2009, a vontade de usufruir, longe do crime, de suas conquistas fez o traficante tentar forjar a própria morte. Comprou um atestado de óbito e marcou data para o enterro. A farsa foi descoberta pela polícia e frustrou os planos de Nem. Era o início de uma mudança de rumo na sua trajetória de sucesso no tráfico.

Em agosto de 2010, uma infeliz coincidência colocou um bonde da ADA (Amigos do Amigos), facção criminosa da qual Nem faz parte, frente a frente com policiais militares que não eram do batalhão corrompido pelo traficante. O confronto fez os criminosos invadirem um hotel de luxo em São Conrado e tomarem hóspedes como reféns.

Pelo telefone, Nem ordenou a seu soldado mais próximo e fiel, Rogério Avelino, o Rogério 157, que todos se entregassem para evitar um desastre de proporções internacionais. Dito e feito.

REBELIÃO

Poucos meses depois, a instalação da UPP de São Carlos fez os chefes locais da ADA buscarem refúgio na Rocinha de Nem. A dificuldade em controlar os novos soldados e os conflitos entre eles e os moradores colocaram forte pressão sobre o traficante, que tentou negociar sua rendição, via intermediários, com o então secretário de Segurança, José Mariano Beltrame. Não rolou.

Em 2011, Nem foi encontrado no porta-malas de um carro de luxo fora da Rocinha. Glenny se diz convicto de que foi um teatro: Antônio queria mesmo era se livrar da chefia do morro nas vésperas da entrada da UPP, ocorrida poucos dias depois da prisão.

Desde então, a favela vem sendo chefiada por Rogério 157, solto da prisão por um habeas corpus. "Antônio nega que ainda comande o tráfico desde a prisão [em RO], mas eu não posso deixar de notar que sua influência na Rocinha continua muito poderosa", ressalta o biógrafo britânico.

De acordo com Glenny, o fato de Rogério 157 ter passado a adotar táticas de milícia, como a cobrança de taxas pelo suprimento de gás e pelo serviço de mototáxi, teria precipitado o conflito atual. "Nem teria ordenado que Rogério deixasse a Rocinha, e ele se negou a fazê-lo, expulsando Danúbia da favela", relata.

Segundo o jornalista, enquanto o Exército mantém um cerco à comunidade, Rogério estaria até agora escondido na mata, aguardando um desfecho. Ele relembra que o atual conflito envolve chefes de uma facção, em meio a um colapso financeiro e de segurança pública no Estado e uma crise política nacional. "Ou seja, um coquetel do demônio."

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Procurado
Cartaz de procurado de Rogério 157, atual chefe da facção na Rocinha
Chamada Rocinha 620x400

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