Folha de S. Paulo


Novo cadastro de adoção poderá ter desde foto até desenho de crianças

O desejo da administradora Joseline Moreira, 42, era adotar duas crianças com até seis anos. Mas, ao ver a foto de Gabriel, de oito meses, com microcefalia, não resistiu: queria conhecê-lo.

"A foto nem era bonita, ele estava com a boquinha aberta, chorando. Mas bateu no meu coração", relata ela, que participou de um projeto do Ministério Público do Rio em prol da adoção de crianças com maior dificuldade de encontrar uma família.

Histórias como a dela estão no centro de um debate sobre novas propostas para mudar o Cadastro Nacional de Adoção, sistema que reúne dados de interessados em adotar e de crianças à espera de adoção no país.

As sugestões, coletadas em cinco encontros com juízes, promotores e técnicos de infância no país, estão agora sob análise do Conselho Nacional de Justiça.

Uma delas é incluir no cadastro fotos, vídeos, cartas e até desenhos de crianças e adolescentes que estão à espera de adoção, especialmente daquelas que não tiveram pretendentes em buscas anteriores no sistema.

Segundo Sandra Torres, juíza auxiliar da corregedoria do CNJ, as informações poderiam ser usadas pelos tribunais em programas de "busca ativa" de interessados em adotar.

O acesso, porém, seria restrito a juízes e técnicos ou mediante autorização para "evitar risco de exposição", diz.

O modelo tem base em experiências de alguns tribunais para estimular a adoção de crianças com mais de sete anos, com irmãos ou com deficiência, por exemplo.

"Muitas adoções têm sido feitas no momento em que pretendentes se associam à imagem ou contexto de uma criança", diz Torres.

Para Rodrigo Medina, coordenador da infância do MP-RJ, que mantém o projeto Quero Uma Família, a medida é uma forma de dar visibilidade a crianças que hoje ficam "invisíveis" nos abrigos.

"Às vezes o pretendente se cadastra para adotar uma criança de cinco anos, vê no sistema, a foto de duas meninas de nove anos e decide mudar. É uma questão de empatia."

A proposta, porém, ainda é vista com ressalvas. "Que tipo de imagem, carta, e que limites teria?", questiona Reinaldo Cintra, desembargador do Tribunal de Justiça de SP.

"Tudo que é emocional em se tratando de adoção, é perigoso. A adoção tem que ser pensada com a cabeça, e não só com o coração", afirma.

Sara Vargas, da Angaad (Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção), avalia que a mudança pode ser positiva, desde que usada nos casos em que não houver pretendentes em busca anterior.

BUSCA DIÁRIA

Também está em estudo a inclusão de uma busca diária no cadastro por um "match" entre o perfil de crianças e o desejado por futuros pais na fila de adoção. Hoje, é necessário o comando do juiz responsável pela criança para que essa busca seja feita, a qual é limitada às opções informadas pelos pretendentes.

A proposta é que essa busca informe ao juiz diariamente os cinco primeiros pretendentes na fila que batem com o perfil da criança.

Por outro lado, a pesquisa também poderá ampliar as opções dos futuros pais. Assim, se um casal planeja adotar uma criança de até três anos, o sistema informará que há outras crianças de quatro ou cinco anos cadastradas.

Dados do CNJ mostram que 80% dos cadastrados informaram que pretendem adotar menores de cinco anos, enquanto apenas 26% das crianças à espera por uma família estão nessa faixa etária.

DESCOMPASSO ENTRE PROCURA E REALIDADE - Quesito 'cor'

DESCOMPASSO ENTRE PROCURA E REALIDADE - Quesito 'idade'

DESCOMPASSO ENTRE PROCURA E REALIDADE - Quesito 'com irmãos'

"É natural que os pretendentes cheguem à Vara da Infância com um olhar. A função é alertar para a realidade", afirma Sandra Torres.

O CNJ deve discutir ainda o momento de inclusão da criança no cadastro de adoção. A orientação atual é que isso ocorra quando há uma sentença definitiva de destituição do poder familiar ""o que indica o rompimento de vínculo com a família biológica.

Parte dos juízes, porém, tem proposto que essa inclusão seja feita assim que houver um primeiro aval favorável para encaminhamento da criança à adoção.

A medida divide opiniões. "A adoção não é garantida", diz Cintra, para quem a opção traz insegurança.

Para Sara Vargas, o ideal seria que a Justiça fosse mais célere na análise dos casos. A previsão é que o CNJ avalie as propostas até o fim deste ano.

BUSCA ATIVA

"Não me falta cadeira / Não me falta sofá / Só falta você sentada na sala / Só falta você estar".

Foi com esses versos, da música de Arnaldo Antunes "A Casa É Sua", cantada por Maria Bethânia, que Maria Júlia, 10, soube que poderia ter, em breve, duas mães.

"Nosso sim veio com música e poesia", conta Margarida Moutinho, 54, sobre o processo anterior ao encontro oficial da nova família.

Número de adoções feitas no país -

Um encontro que só foi possível porque o casal, que já estava na fila para adoção, decidiu aos poucos mudar o perfil esperado de criança para adotar.

"Percebemos que não estávamos no grupo que acha que precisa adotar um bebê, mas sim no grupo que queria um filho, independente da idade", conta.

O pontapé para a mudança veio por meio de um grupo de "busca ativa", recurso usado por grupos de apoio e tribunais para tentar encontrar famílias para crianças há mais tempo em abrigos.

Assim, da opção inserida inicialmente no cadastro por adotar uma criança de até cinco anos, Margarida se ofereceu para se tornar mãe de uma menina de dez, que já havia sido devolvida anteriormente por uma família.

Ao saberem que a menina também tinha uma irmã, de oito anos, combinaram com outro casal de amigas na "fila" e da mesma cidade a possibilidade de uma adoção conjugada. Assim, as meninas não perderiam o contato.

"Só depois de alguns dias que recebemos a primeira foto. E nos encantamos com elas", relata.

A criação de ferramentas que estimulam esse tipo de busca ativa por famílias, como ampliação da pesquisa além das opções definidas pelos pretendentes e inclusão de imagens para algumas crianças, é proposta na discussão do novo cadastro nacional de adoção.

Foi essa busca que fez a vendedora autônoma Sandra Cristina dos Santos, 54, conhecer os filhos Teyllor, hoje com 16, e Maria Eduarda, 4.

Inicialmente, ela havia preenchido o pedido para entrar no cadastro para adoção de duas crianças, de até cinco e sete anos de idade.

Um grupo de busca ativa por pretendentes, porém, a avisou que havia dois irmãos, na época um com 12 anos e o outro com cinco meses de idade. "Perguntaram: você quer conhecer?"

"Se ligaram para mim, é porque são meus filhos", respondeu.

AMPLIAÇÃO

"O desejo de adotar determinado perfil de criança é idealizado, e pode ser amadurecido e transformado", afirma Élio Braz Mendes, juiz da infância do Recife.

Há dois anos, ele está à frente do projeto Adote um pequeno torcedor, que divulga fotos e perfil de crianças à espera por adoção como uma forma de atrair famílias interessadas.

A medida, porém, gera críticas pelo risco de exposição. Mendes rebate.

"Essas crianças precisam ter vez e voz", afirma. "Fazemos uma consulta no cadastro e, se tiver pretendentes, chamamos. Se não tiver, divulgamos. Nós não temos o direito de colocar uma cláusula de barreira."

Sandra, que hoje é presidente de um grupo de apoio à adoção, concorda que o desejo de adotar uma criança pode ser ampliado. Para ela, porém, isso não pode ser uma imposição.

"Tem que estar ciente. Não adianta mudar o perfil só para adiantar o processo", diz.

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O que é o sistema
Contém dados de pretendentes à adoção e de crianças aptas a serem adotadas. É mantido e acessado pelo CNJ e varas da infância

Como é hoje
Cadastro tem poucas informações, cruzamento de dados restrito e não é atualizado com frequência em todos os municípios

Como deveria ser
Sistema integrado e atualizado, com busca automática e mais rápida para encontrar famílias para crianças à espera de adoção

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PROPOSTAS EM ANÁLISE PELO CNJ

Unificação
Junção dos sistemas de cadastro de pretendentes e de crianças que estão em abrigos. Hoje, eles são separados

Busca diária
Atualização diária automática, com alerta aos pretendentes sobre a existência de crianças com perfil aproximado ao procurado inicialmente

Imagens das crianças
Inserção de fotos, vídeos, cartas e desenhos das crianças, com divulgação restrita.

Históricos
Inclusão do histórico de acolhimento das crianças e relatório psicológico e social, hoje fora do sistema. Acesso continuaria restrito a juízes e equipes técnicas

Sem definição
Cadastro de crianças cujo processo de destituição familiar já teve primeiro aval, mas ainda não está decidido. Hoje, elas aguardam definição para serem encaminhadas à adoção

Avisos
Alertas periódicos aos pretendentes sobre a situação de seu processo e seu lugar na "fila"

41.003
é o número de pretendentes que aguardam na "fila" para adotar uma criança

7.983
é o número de crianças e adolescentes à espera por adoção no país


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