A Justiça Federal do Distrito Federal concedeu uma liminar que permite que psicólogos possam tratar gays e lésbicas como doentes e fazer terapias de "reversão sexual", sem que sofram censura ou sanções do CFP (Conselho Federal de Psicologia).
A decisão foi tomada na sexta-feira (15) pelo juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho, após ação de psicólogos favoráveis a esse tipo de terapia.
Em nota, o CFP, que é contrário à medida, afirma que a ação "representa uma violação dos direitos humanos e não tem qualquer embasamento científico". Diz ainda que vai recorrer da decisão.
A ação buscava suspender a resolução 01/1999 do conselho, a qual orienta psicólogos sobre como atuarem nas questões relativas à orientação sexual. O documento afirma que esses profissionais "não devem exercer qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados". Diz ainda que "psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades".
Psicólogos que entraram com o pedido pela suspensão, por sua vez, alegam no processo que a resolução representava "verdadeiro ato de censura" e impedia os profissionais de desenvolverem estudos, atendimentos e pesquisas científicas sobre o tema.
Na liminar, o juiz mantém a integralidade do texto da resolução, mas determina que o conselho, responsável por editar normas sobre a atuação da categoria, a interprete de modo a "não impedir que psicólogos façam estudos ou atendimento buscando reorientação sexual".
"A decisão abre a perigosa possibilidade de uso de terapias de reversão sexual", informa em nota o CFP.
OMS E ENTIDADES
Para o conselho, a medida fere entendimento da OMS (Organização Mundial de Saúde), segundo a qual a homossexualidade não pode ser considerada uma patologia, mas uma variação natural da sexualidade humana, um posicionamento reforçado por outras associações médicas e científicas.
A Associação Americana de Psiquiatria, por exemplo, não classifica homossexualidade como "distúrbio" ou "perversão" desde 1973. No Brasil, a classificação "homossexualismo" foi retirada da lista de patologias pelo Conselho Federal de Medicina em 1985.
Ainda de acordo com o Conselho Federal de Psicologia, em uma audiência de justificativa prévia para análise do pedido de liminar, representantes da autarquia já haviam se posicionado contra a medida. "Também alertaram que as terapias de reversão sexual não têm resolutividade, como apontam estudos feitos pelas comunidades científicas nacional e internacional, além de provocarem sequelas e agravos ao sofrimento psíquico", diz em nota.
Entre esses agravos, estão depressão, ansiedade, perda do desejo sexual e suicídio.
Para o presidente do CFP, Rogério Giannini, além de abrir brecha para a aplicação de terapias sem embasamento científico, a decisão fere a autonomia do conselho e aumenta o risco de preconceito e agressões contra gays.
"São dois efeitos: o primeiro é desinibir esses grupos [favoráveis à "cura gay"]. Vai ter um aumento de oferta disso. E o outro é o aumento do preconceito, porque novamente é colocado por esses grupos como doença", informa. "Nos preocupa a possibilidade de aumentarem as agressões contra gays. E o Brasil infelizmente já tem índices alarmantes de homofobia."
Segundo Giannini, o argumento de que a resolução impede pesquisas na área de sexualidade não é válido. "É um contrassenso. Não cabe ao conselho decidir sobre pesquisa", afirma.
Ele lembra ainda que, antes da decisão da Justiça Federal do DF, ao menos outras duas ações judiciais de grupos favoráveis à "cura gay" já tentaram anular os efeitos da resolução do conselho. Em ambos os casos, no entanto, a resolução havia sido mantida.
'CURA GAY'
A Folha procurou o advogado Leonardo Cavalcanti, que representa os autores da ação, para comentar o caso. Cavalcanti, porém, afirmou inicialmente via mensagem que falaria apenas se a matéria não citasse o termo "cura gay".
Questionado novamente, no entanto, informou que a defesa dos autores ocorre não para oferta de uma cura, mas de tratamentos de "reorientação sexual" de pacientes "egodistônicos", "que estariam em transtorno e desordem com sua orientação sexual e não querem ter relação com a pessoa do mesmo sexo".
"Muitos desses egodistônicos surgem em razão de um abuso ou violência sexual na infância, e cresceram com esse desejo. Ele não nasceu gay", diz. "Não quer dizer que está curado, mas que deixou de ter relação sexual com a pessoa do mesmo sexo".
Uma das pessoas que assinam o pedido pela liminar é a psicóloga Rozangela Justino, que chegou a sofrer censura pública e teve o registro cassado pelo Conselho de Psicologia, após ação movida por psicólogos e grupos de defesa dos direitos LGBT. Cavalcanti, porém, diz que uma outra liminar suspendeu a cassação.
Em entrevista à Folha em 2009, Rozangela, que é evangélica, afirmou ter "atendido e curado centenas" de pacientes gays. A reportagem a procurou para voltar a comentar o caso, mas ela não respondeu até o momento.
'IDADE MÉDIA'
Entidades que defendem os direitos de gays e lésbicas também se manifestaram. Para Toni Reis, presidente da Aliança Nacional LBGTI, a decisão representa um retrocesso. Segundo ele, o grupo planeja ir à Justiça contra a decisão e, se não for derrubada, levar o caso à Comissão Internamericana de Direitos Humanos.
"Vamos recorrer, do contrário vamos voltar à Idade Média, quando as pessoas eram torturadas por serem homossexuais", afirma ele, para quem a decisão é reflexo da pressão de grupos religiosos que defendem a "cura gay".
"Nós gays saímos do armário e os obscurantistas também. Há uma onda de eventos que tentam patologizar a homossexualidade e dizer que não temos o direito de ser o que somos. Não vamos aceitar isso", completa.
Em nota, a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) também rechaçou a decisão e afirma que tentará reverter a medida.
"Recebemos com perplexidade a decisão que possibilita que hajam terapias de tortura disfarçadas de 'conversão da homossexualidade'. Não acreditamos que deva ser tratada como doença algo que internacionalmente já é reconhecido como um fator não patológico", informa.