Folha de S. Paulo


Cancelamento de corrida vira 'febre' em Cumbica e irrita clientes da Uber

"Por que você quer saber para onde eu vou?", questiona a passageira, desconfiada, ao telefone. Do outro lado da linha, o motorista da Uber gagueja: "É... por nada".

Após descobrir o destino da corrida, o homem do aplicativo desliga o telefone. Preocupada, a psicóloga Júlia Prado, 25, pensa em cancelar o pedido. "Fiquei com medo. Muito estranho", diz ela. Júlia não sabia, mas a pergunta do motorista é comum no desembarque do aeroporto de Guarulhos e faz parte de uma estratégia para selecionar corridas mais lucrativas.

Na região, centenas de motoristas de diversos aplicativos, como Uber, 99 e Cabify, aguardam até 12h em "bolsões", postos de gasolina e acostamentos de rodovias por uma viagem para São Paulo ou outras cidades. Como a fila virtual é longa, os motoristas precisam de corridas maiores para compensar o tempo de espera.

Por isso, muitos ligam ou mandam mensagens para os usuários para descobrir o destino final. Caso considerem a distância curta, pressionam o passageiro a cancelar ou rejeitam a corrida.

Na prática, a estratégia que irrita e gera desconfiança dos passageiros é permitida por uma regra da Uber. Segundo motoristas da empresa, eles podem cancelar até três viagens sem perder o lugar na fila virtual do aeroporto. Questionada, a empresa não confirmou nem negou a regra. "Não é correto, mas infelizmente tem muita gente que não é profissional", diz Luis Lima, 34, motorista da Uber.

Alder Amaury, 45, da 99, diz que o aplicativo não permite o cancelamento na região do aeroporto. "Se o motorista rejeitar, sai da fila", conta ele, que já esperava em Cumbica por três horas. A empresa confirmou o procedimento e afirmou que a fila virtual foi iniciada em agosto.

A Cabify diz que o seu motorista não tem a opção de cancelar a viagem no aeroporto, onde a fila do aplicativo existe desde junho de 2016.

DESCONFIANÇA

"É ridículo. Eu já não confio em táxi, agora nem em Uber. Fica difícil", disse Júlia, antes de embarcar no carro –o motorista tinha aceitado a viagem, para a Casa Verde, bairro da zona norte de São Paulo a 25 km do aeroporto.

Já o doutorando Marc Bogo, 29, não teve tanta sorte. Ele pediu o Uber para Vila Mariana, na zona sul e a quase 30 km de Cumbica, e o motorista recusou. "É péssimo. A vantagem do Uber era não ter essa negociação. É uma quebra de contrato", afirma.

No bolsão informal que se formou ao lado do aeroporto, motoristas que aguardavam a vez na fila ficaram indignados. "Cancelou para a Vila Mariana? São esses que prejudicam o sistema. O pessoal só quer corrida para cidade do interior ou litoral", explica Tiago, 44. Ele não quis dar o sobrenome com medo de ser dispensado pela Uber.

No desembarque, o empresário Marcelo Camacho, 52, pediu um Uber para Santana, na zona norte. Ele está acostumado a informar o destino e ter a corrida cancelada. "Já aconteceu umas cinco vezes aqui." O carioca Rafael Costa, 28, tem o mesmo problema. A sua empresa o coloca em hotel em Guarulhos sempre que ele viaja a São Paulo, o que dificulta pedir o Uber, já que a distância é curta. "Muitos colegas do trabalho reclamam."

ESTRANGEIRO

Quando o cliente é um turista, a estratégia gera mais contratempos. O empresário chinês Jonathan Yan, 39, corria de um lado para o outro no desembarque atrás de alguém que pudesse ajudá-lo com a tradução. No outro lado da linha, o motorista da Uber queria saber o destino da viagem.

Quando a reportagem perguntou por que ele precisava da informação, ele se atrapalhou. "Eu tenho que colocar no GPS, para uma empresa que rastreia o carro." Quando entendeu a situação, Yan classificou a atitude como "pouco profissional". "Mas na China também acontece", disse.

Desde janeiro, a Uber testa uma nova regra na fila do aeroporto: o motorista que chega a Guarulhos com passageiro tem prioridade, inclusive à frente do "bolsão" oficial anunciado nesta terça-feira –o aplicativo aluga um espaço para seus carros no aeroporto e cobra R$ 4,50 dos passageiros em cada corrida.

Mas nem sempre essa prioridade funciona, segundo os motoristas. "É muito bom, mas se você não for chamado em 15 minutos, vai para o final da fila", afirma o motorista Cassio Silva, 40.

PRIORIDADE

Para os passageiros, a alteração parece ter diminuído a espera: os carros com prioridade chegam mais rápido.

A mudança também pode ajudar a diminuir o número de carros parados na região, bem como cancelamentos, avaliam motoristas. Na prioridade, caso cancelem a corrida, eles são colocados no fim da fila. Por outro lado, motoristas acreditam que o número de carros que chegam com passageiros é muito pequeno e, por isso, cancelamentos e bolsões vão continuar.

O "bolsão" da Uber fica ao lado do terminal 1, com capacidade para 230 carros. Os motoristas reclamam que o número de vagas é pequeno para a quantidade de carros.

"Tem mais de 400 carros aqui. E você só pode entrar no espaço quando já está entre os 180 primeiros, se for Uber X, ou entre os 50, se for Uber Black", afirma Tiago.

Outra novidade são os pontos da Uber, que tentam facilitar o encontro entre motoristas e passageiros. Localizados no embarque, nos terminais 2 e 3, e na saída do terminal 1, eles têm confundido usuários. "No embarque? Não tem lógica, saímos no desembarque", reclamou o engenheiro Daniel Porto, 34.

AFASTAMENTO

A Uber afirma que a prática de recusar passageiros em busca de corridas mais lucrativas não é tolerada e leva ao desligamento de motoristas. A empresa também orienta que usuários denunciem esse tipo de atitude por meio do aplicativo.

"Motoristas parceiros que recorrentemente cancelam viagens prejudicam o uso da plataforma e violam os termos de uso. Este tipo de comportamento leva ao desligamento da plataforma, mesmo sem qualquer tipo de relato do usuário", disse a empresa, por meio de nota.

A Uber afirma que o cancelamento pelo motorista "é permitido para situações nas quais ele não consiga encontrar o usuário". A empresa aposta nos novos pontos no aeroporto como forma de facilitar o encontro de passageiros e motoristas.

De acordo com a Uber, a prioridade para carros que chegam ao aeroporto com passageiros está em teste desde janeiro e já é aplicada em outros países. Ao contrário dos relatos de motoristas, a empresa diz que não há um limite de tempo para a prioridade, que dura até o motorista receber um passageiro.

"Acreditamos que será possível conseguir um carro em menos de 5 minutos em todos os terminais do aeroporto –tornando a experiência melhor para o usuário, que consegue um carro rapidamente, e também para o parceiro, que utiliza melhor seu tempo para gerar renda", disse a empresa.

Sobre a localização dos pontos de encontro e do número de vagas para motoristas na área nova, a Uber disse que pode implementar melhorias. "Esta é a primeira parceria entre a Uber e um aeroporto deste porte na América do Sul. Como sempre, vamos ouvir os feedbacks de usuários e motoristas parceiros para tentar levar a todos uma plataforma cada vez mais eficiente."


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